Papo cabeça: A literatura pode salvar a educação

A arte em geral e a literatura em particular não servem para nada? São atividades cuja grandeza reside nessa sublime “inutilidade”? A fruição de uma pintura, de um poema, de uma obra de arte é apenas isso: fruição?

No entanto, o prazer que sentimos na leitura de um conto, de um romance, de uma crônica é um prazer interessante e interessado. O prazer estético que a literatura nos proporciona torna mais atentos às dores e aos odores da vida. Kafka dizia que um livro deve ser como “martelo que rompa a espessa camada de gelo” sob a qual nos escondemos.

Afinal, para que serve a literatura? Para que escrever um texto, brincar com as palavras, conceber imagens, metáforas? Para que criar diálogos entre seres inventados, descrever mundos paralelos, fazer jorrar e enxugar lágrimas invisíveis? O professor francês Antoine Compagnon tem uma resposta simples e impactante: “quando começamos a ler uma narrativa ou um poema corremos o risco de nos tornar diferentes do que éramos antes dessa leitura”. A literatura nos transforma.

Educar é transformar

Leituras educadoras são aquelas que nos transformam, não só em leitores melhores, mas em pessoas mais atentas ao próprio ato de viver. Essa transformação se opera, por exemplo, na maneira de ver o mundo. Aprendemos a ver o que não víamos antes. Como nos fazem entender estes versos do poeta mineiro Murilo Mendes:

As mãos veem, os olhos ouvem, o cérebro se move.

A luz desce das origens através dos tempos

E caminha desde já

Na frente dos meus sucessores (“Somos todos poetas”)

 

É como se nossa percepção ganhasse força. Nossa sensibilidade aumenta. O tato, a visão e a audição se deslocam. O cérebro, preso aos lugares-comuns, começa a se mover para todos os lados. Experimentamos a lucidez. Enxergamos o passado e o futuro mais nitidamente.

Tornamo-nos, assim, pessoas mais críticas, menos manipuláveis. Já não nos seduzem certas programações, certos discursos, certas certezas. Até mesmo certas obras literárias se mostram insuficientes quando outras leituras já nos ensinaram a escolher e a ler melhor. A ler melhor as linhas e as entrelinhas, a forma e o fundo, o óbvio e o interpretável.

Não precisamos mistificar a leitura como se o toque mágico da palavra literária operasse milagres! Mas é um fato constatável que ler mais e melhor nos ajuda a vencer algumas submissões. Lendo com frequência, tendemos a exigir, de nós mesmos e de nossos interlocutores, uma clareza maior ao falar, mais sutileza ao pensar, um pouco mais de originalidade ao viver.

Resistir ou desistir?

Do que fala a literatura, afinal de contas? Ainda que se refira a outros planetas, a outras sociedades, a outras terras, a outros seres, é sempre de mim que a literatura fala. De mim e de você. É sempre de nossas esperanças e desesperos que ela fala. É da nossa humanização e da nossa desumanização que ela fala. Lendo intensamente, sentimo-nos intensamente visados. Reforçamos nossa autoconsciência. E daí brota a vontade de resistir.

A “desistite” é uma doença da alma que nos faz abrir mão da responsabilidade de viver. Uma existência sem sentido nos leva à desistência. Desistimos de encontrar nos meandros dos significados comuns, que dormem durante décadas no dicionário, um sentido especial para prosseguir no jogo da vida, na leitura da vida.

Desistir é também desistir de pensar. A leitura educadora, em contrapartida, convida à resistência, ao uso da inteligência, ao desejo da experiência, ao sentido da urgência. Um personagem complicado denuncia minhas complicações. Um verso cheio de ambiguidades me interroga. Vou buscar meu tempo perdido. Vou respirar meu sopro de vida. Vou contar meus cem anos de solidão.

Num tempo em que a atividade dos professores parece ter sido substituída pela informação abundante e pelo entretenimento onipresente, a literatura pode vir em nosso auxílio. Porque, nela, é possível encontrar caminhos para a formação de si mesmo e para o reencontro com nossos semelhantes que são, em última análise, nossos dessemelhantes.

Resistir tem a ver com o reconhecimento de quem nós somos. O nosso autoconhecimento. É de justiça (e isso ninguém discute) que os outros reconheçam o nosso valor. Mas se não formos nós os primeiros a reconhecê-lo, nada feito. Nós valemos, em boa medida, aquilo que lemos. Nossas leituras fazem parte de nossa identidade. Somos o que lemos e o modo como lemos. Gostar de ficção nos aproxima da realidade.

O músico Jorge Mautner costuma dizer que existem dois tipos de imbecis: “os imbecis que não leem, e os imbecis que leem”. A diferença é a seguinte: os que leem conhecem a extensão da imbecilidade própria e alheia, ao passo que os que não leem ignoram até mesmo a sua lamentável situação. Os que fogem da leitura mal desconfiam que andem perdidos em todos os espaços.

 

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