Em decisão unânime, a 3ª Seção do STJ julgou improcedente, nesta quarta-feira (27), o incidente de deslocamento de competência ajuizado pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O pedido buscava transferir para a esfera federal a investigação sobre os mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes. Os crimes ocorreram em 2018 no Rio de Janeiro.
A ministra-relatora, Laurita Vaz, defendeu a manutenção do caso sob competência da Justiça estadual, da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro. Segundo a ministra, o caso não preenche os requisitos necessários para a federalização. Ela disse que não é possível verificar desídia ou desinteresse por parte das autoridades estaduais nas investigações para solucionar o crime.
“Ao meu sentir, não está configurada, nem de longe, inércia, tampouco desinteresse da Polícia Civil e do Ministério Público do estado. O que transparece é justamente o contrário. Há um evidente empenho dessas autoridades em solucionar os crimes, cujos executores, inclusive, já foram identificados”, afirmou.
Do caso
A vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram vítimas de um atentado a tiros em 14/03/2018. No âmbito das investigações conduzidas no Rio de Janeiro, foram presos preventivamente e indiciados pelo crime em 12/03/2019; o sargento aposentado Ronnie Lessa e o ex-policial Élcio Queiroz.
Posicionamento da PGR
Em setembro do ano passado, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ajuizou o incidente de deslocamento de competência no STJ; com o objetivo de federalizar as investigações do caso no que diz respeito aos mandantes.
A procuradora apontou falhas na condução do inquérito da Polícia Civil, pois não teria sido observado o sigilo das investigações. Além disso, para a PGR, o deslocamento do caso seria necessário para a correta identificação dos autores intelectuais do duplo homicídio; e, o relato de contaminação do aparato policial do Rio de Janeiro por milícias colocaria em dúvida a investigação feita no estado.
A PGR alegou o risco de responsabilização internacional do Brasil por não apurar violações de direitos humanos; pediu que o caso fosse conduzido pela Polícia Federal e pela Justiça Federal, mantendo sob responsabilidade do RJ o processo relativo aos executores já identificados.
Posicionamento do MP-RJ
O MP-RJ se manifestou contra a federalização; observou que foram realizados diversos atos de investigação e ouvidas mais de 230 pessoas com o propósito de apurar os mandantes do crime.
Para o MP estadual, as investigações são extremamente trabalhosas e criteriosas; e, é preciso afastar a ideia de falta de empenho ou de suposta interferência indevida no trabalho dos investigadores.
Posicionamento do STJ
Citando a jurisprudência do STJ sobre o tema, a ministra Laurita Vaz disse que a federalização pressupõe três requisitos:
“A existência de grave violação a direitos humanos; o risco de responsabilização internacional do Brasil decorrente do descumprimento de obrigações jurídicas assumidas em tratados internacionais; e a incapacidade das autoridades locais de oferecer respostas efetivas”.
Segundo a relatora, a gravidade dos crimes é inquestionável. As circunstâncias que pairam sobre o caso, conforme vê, configuram um grave atentado não só aos direitos humanos, mas ao próprio Estado Democrático de Direito.
A ministra explicou que, embora o crime organizado seja um dos principais problemas de segurança pública do país; não se cogita transferir as centenas de investigações e processos criminais em curso nos estados para a Justiça Federal, medida que seria desarrazoada e inexequível.
A alegação do MPF de que haveria contaminação da polícia do Rio pelo crime organizado, segundo a relatora, foi genérica; sem apoio em indícios de prova desse suposto comprometimento dos investigadores.
Precipitação
Ela lembrou que o Ministério Público Federal, no dia seguinte ao crime, instaurou um grupo de trabalho composto por cinco procuradores para acompanhar as investigações. Essa movimentação rápida do MPF, de acordo com a ministra, “denota certo açodamento (pressa), com precipitada invasão de atribuições”.
A ministra afirmou que não há notícia de abertura de nenhum procedimento formal perante as cortes internacionais para apurar eventual responsabilidade do Brasil; por decorrência de suposto descumprimento de obrigações assumidas em tratados de direitos humanos.
A tese de federalização do caso em razão de possível condenação internacional do Brasil não procede; pois, na avaliação da ministra, não se verificaram inércia, descaso ou condescendência.
Atuação das autoridades estaduais
Laurita Vaz mencionou diversos procedimentos do MP-RJ para concluir que não há conivência ou imobilidade das autoridades locais na apuração de crimes praticados por milicianos.
Ao citar a complexidade do crime investigado, ela elogiou o trabalho em conjunto feito pelo MP-RJ e a Polícia Civil; que usaram recursos tecnológicos de ponta para identificar a dinâmica do crime contra Marielle Franco e Anderson Gomes.
Complexidades do inquérito
“As tribulações inerentes ao caso, frise-se, de altíssima complexidade, não seriam exclusividade dessa ou daquela polícia judiciária. Ouso afirmar que qualquer instituição brasileira de investigação enfrentaria as mesmas dificuldades, obstáculos e contratempos surgidos no inquérito em curso perante a Polícia Civil fluminense”; comentou a ministra sobre a alegação de demora na investigação.
Considerando o vasto acervo formado nos autos, com centenas de diligências cumpridas e outras em andamento, o deslocamento da competência traria efeito contrário ao pretendido. Portanto, geraria atraso nas investigações, declarou a ministra.
Direito à vida
Ao acompanharem o voto da ministra Laurita Vaz, os demais integrantes da Terceira Seção manifestaram apoio ao presidente do colegiado, ministro Nefi Cordeiro. O ministro repudiou os recentes ataques ao Judiciário e defendeu a integridade da atividade judicial como uma garantia de proteção à própria sociedade.
O ministro Jorge Mussi afirmou que “todo” homicídio doloso, “independentemente da vítima”, representa grave violação ao maior dos direitos humanos, o direito à vida. Entretanto, com base nas informações trazidas aos autos, os órgãos atualmente responsáveis pelas investigações no RJ têm realizado um trabalho sério e efetivo. O que afasta o preenchimento dos requisitos para a federalização, ressaltou o ministro.
Jurisprudência
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca ressaltou que: na ausência de uma regulamentação legal infraconstitucional dos incidentes de descolamento de competência, o STJ construiu orientação sobre os pressupostos para a federalização; baseada na violação de direitos humanos, na possibilidade de responsabilização internacional do Brasil e na constatação de ineficiência das instituições locais responsáveis pela apuração criminal. (Previsto na Constituição Federal a partir da Emenda Constitucional 45/2004)
No caso dos autos, todavia, o ministro entendeu que não foram cumpridos os pressupostos para o deslocamento de competência. Reynaldo Soares da Fonseca lembrou que a atuação da Polícia Civil do Rio está sujeita ao controle externo do Ministério Público local; e, também, que há a possibilidade de colaboração entre as autoridades estaduais e federais, conforme previsto na Lei 12.850/2013.
Por sua vez, o ministro Ribeiro Dantas ressaltou que nada indica que a Polícia Civil e o MP-RJ não consigam lidar com as investigações criminais; e, também, não há certeza de que, na hipótese de transferência para a Polícia Federal e o MPF, haveria maior sucesso na persecução penal.
Intervenção
Sobre o argumento do MPF de que o crime foi cometido durante intervenção federal na segurança pública do Rio; Ribeiro Dantas enfatizou que não existem elementos constitucionais ou legais que indiquem que delitos ocorridos durante intervenção nos estados devam ser submetidos à competência federal.
Para o ministro, se fosse válido esse argumento, todos os crimes cometidos no Rio à época deveriam ter sua competência deslocada para a Justiça Federal. Entretanto, a alternativa seria completamente inviável, afirma o ministro.
Também acompanharam o voto da ministra-relatora Laurita Vaz, os ministros Sebastião Reis Júnior, Rogerio Schietti Cruz, Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik.