Malala defende Fundeb e igualdade na educação brasileira

Malala diz se preocupar com o futuro das brasileiras — especialmente o de meninas negras e indígenas que, por razões diferentes das dela, não conseguem estudar e correm o risco de ver suas escolas fecharem.

Não há no Brasil extremismo à altura do Talebã, que por anos proibiu que meninas fossem à escolas no vale onde nasceu Malala Yousafzai, no Paquistão. Aos 15 anos, já conhecida por lutar pela educação, Malala foi alvejada no olho por um extremista e entrou em coma. Mas o tiro saiu pela culatra: recuperada, a menina ganhou projeção e poder político, trouxe a atenção do mundo para as estudantes de seu vilarejo e se tornou a pessoa mais jovem da história a ganhar um prêmio Nobel da Paz. Ela só tinha 17 anos.

Hoje, aos 23, formada em filosofia, política e economia pela universidade de Oxford, Malala diz se preocupar com o futuro das brasileiras — especialmente o de meninas negras e indígenas que, por razões diferentes das dela, não conseguem estudar e correm o risco de ver suas escolas fecharem.

“Mais de 1,5 milhão de meninas estão fora da escola no Brasil”, diz Malala em entrevista exclusiva à BBC News Brasil. “Meninas negras e indígenas estão entre as que têm menos chance de completar 12 anos de educação, por conta da pobreza, do racismo estrutural e de outras barreiras sociais.”

À reportagem, por escrito, a jovem que tinha apenas 11 anos quando narrou o terror talebã em um blog anônimo mostra intimidade com o debate sobre educação em Brasília.

“É animador ver que estamos chegando perto de diminuir as diferenças na educação para milhões de meninas do Brasil”, diz Malala à BBC News Brasil.

Alvo da votação mais importante do ano sobre a educação no Brasil, o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica) é responsável pela distribuição de R$ 150 bilhões anuais em verbas para escolas e professores, da creche ao ensino médio.

Com a meta de reduzir a desigualdade na educação pública, o fundo reforça o caixa educacional dos municípios mais pobres do país. Se ele não for renovado nos próximos meses, será extinto em 31 de dezembro.

‘Um futuro melhor para o Brasil’

 

Contra um forte lobby do governo de Jair Bolsonaro, que tentava empurrar a renovação do Fundeb para 2022, a Câmara dos Deputados aprovou, em 21 de julho, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que aumenta os recursos repassados pela União.

Nos próximos dias, o Senado pode confirmar a decisão, que também torna o fundo permanente, ou devolvê-la aos deputados.

A paquistanesa teve contato com o tema durante conversas com estudantes e ativistas em 2018, durante sua única visita ao Brasil — quando comemorou 21 anos.

Fundado por Malala e pelo pai, Ziauddin Yousafzai, em 2013, o Fundo Malala investe e apoia ativistas da educação no Afeganistão, Brasil, Etiópia, Índia, Líbano, Nigéria, Paquistão e Turquia. O objetivo da ONG é lutar por educação gratuita para e de qualidade para meninas.

Na ocasião, as emissárias da ativista paquistanesa tiveram uma audiência pública com parlamentares e um encontro com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

“(Ele) significa professores mais preparados, material escolar atualizado, menos escolas superlotadas e mais oportunidades para que estudantes tenham acesso a tecnologia”, afirma.

“E um futuro melhor para o Brasil”

A mudança mais importante aprovada na Câmara é o aumento no aporte do governo federal ao fundo. Hoje, 10% de seus recursos vêm da União e 90% vêm de Estados e municípios — uma conta considerada injusta pelos últimos, que dizem que a União arrecada muito mais impostos.

O texto também prevê que o aporte da União aumente para 12% em 2021 e vá crescendo progressivamente até chegar a 23% em 2026.

A maior parte destes recursos adicionais vai para Estados e municípios pobres que hoje não conseguem alcançar um patamar mínimo de investimentos por aluno, mesmo que esses municípios estejam em Estados mais ricos.

Sem ‘já ganhou’

 

Segundo o Senado, a PEC será votada “ainda em agosto”. Como prevê mudança na Constituição, a proposta precisa ser aprovada no Senado em dois turnos, com ao menos 49 votos favoráveis em cada um. Em caso de modificação, o projeto volta para a Câmara, que havia aprovado a PEC por 499 votos a 7, na primeira votação, e por 492 votos a 6, na segunda.

Todos os deputados que votaram contra fazem parte da base do presidente Jair Bolsonaro: Zacharias Calil (DEM-GO), Bia Kicis (PSL-DF), Chris Tonietto (PSL-RJ), Filipe Barros (PSL-PR), Junio Amaral (PSL-MG) e Paulo Martins (PSC-PR). Já no Senado, o relator Flávio Arns (Rede-PR) apresentou relatório favorável ao projeto sem qualquer alteração.

“Foi uma grande vitória em um contexto extremamente adverso, mas não podemos cair no já ganhou”, diz à reportagem a educadora Denise Carreira, que atua pelo Fundo Malala como defensora do direito à educação de meninas e mulheres e é coordenadora da ONG Ação Educativa.

“É preciso estar bastante atento ao Senado, porque há riscos de novos ataques ao Custo Aluno-Qualidade, por exemplo, que conseguiu ser aprovado na Câmara. Depois, o próximo desafio é a regulamentação.”

Considerado por especialistas um dos principais avanços da PEC recém-aprovada, o Custo Aluno-Qualidade (Caq) diz quanto dinheiro o país precisa investir por aluno ao longo dos anos para garantir padrões mínimos de qualidade.

O objetivo do dispositivo é aproximar o nível educacional brasileiro do visto em países desenvolvidos. “A votação na Câmara traz conquistas muito importantes, que têm a ver com uma luta histórica da sociedade civil por uma política de Estado de educação que realmente esteja comprometida com o direito à educação de qualidade”, diz.

Crianças educadas gerariam trilhões em riqueza

 

À BBC News Brasil, Malala afirma que “falhar no investimento no futuro de meninas sem acesso a escolas significa uma perda para todo o país”. “A educação das meninas cria uma sociedade mais saudável e pacífica e uma economia mais forte”, diz Malala, com base em uma pesquisa publicada há dois anos pelo Instituto Malala e o Banco Mundial.

O presidente Bolsonaro e seus representantes na esplanada dos ministérios, no entanto, têm criticado o aumento nos recursos destinados pelo governo à educação pública.

No ano passado, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, retirou o apoio do governo à proposta do novo Fundeb, afirmando que ela “feria o equilíbrio fiscal” e não era “solvente a longo prazo”.

O Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, disse que não há dinheiro suficiente para elevar a participação da União. Em março, em videoconferência com prefeitos, Guedes defendeu a prorrogação do Fundeb no formato atual, em vez da aprovação da nova PEC.

“O Brasil vive uma política econômica de austeridade, considerada pela ONU a mais drástica contra direitos sociais em todo o planeta”, avalia Denise Carreira. “Ela culpabiliza o gasto social e ambiental pela crise econômica. Usa um discurso ideológico que defende um estado mínimo em um país com desigualdade imensa e está longe de garantir as condições básicas de sobrevivência da população.”

“E essa austeridade acaba estimulando disputa de recursos entre as áreas sociais”, segue Carreira. “No contexto da pandemia, a saúde tem sido privilegiada. Mas a educação é a politica mais capilar de um país, a que chega mais no cotidiano da população. Todos os dias, milhões de famílias se organizam para que seus filhos, seus netos, possam ir a escola, um dia a dia sustentado majoritariamente por mulheres, mães, tias, avós.”

A especialista, que foi uma das criadoras do Fundeb na primeira década dos anos 2000, diz que o transporte escolar e merendas estão entre os grandes desafios do país. “Ele é fundamental para que comunidades do campo, quilombolas, indígenas tenham direito à educação. No sertão do Piauí, crianças caminham 13 km, 15 km para chegar a escola. E quando chegam lá, têm ainda aquela alimentação precária, bolachas, enlatados e é isso.”

‘Não esperem ficar adultas’

 

Na entrevista à concedida à BBC News Brasil, Malala disse ter “memórias maravilhosas” do aniversário que passou no Brasil. “Conheci garotas em todo o país e aprendi sobre sua luta pela educação e por igualdade.”

“Portanto eu sei muito bem quão fortes são as meninas brasileiras”, continua Malala.

Questionada sobre que mensagem mandaria às brasileiras que sonham, um dia, chegar aonde Malala chegou, a jovem surpreende. “Elas não precisam ser como eu!”

Malala prossegue: “Meninas e jovens mulheres contribuem com suas comunidades de várias formas diferentes por meio de organização, tecnologia, arte, educação e outros”.

Ela encerra a entrevista com um recado. “Meu único conselho é que vocês saibam que não precisam esperar ficarem adultas para se tornarem líderes.” *As informações são da BBC News Brasil

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