A língua é uma ferramenta de caráter do povo

Os ditos populares são juízo de valor que se pretendem definitivo. Contra eles não há argumentação, sobra-nos resignação e acatamento – quando muito um riso nervoso de discórdia. Mas o que fazer contra a sabedoria cunhada há tempos e transmitida fervorosamente por gerações?

Mas será mesmo que não devemos meter a colher da curiosidade, da discórdia ou do incômodo para questionar o matrimônio entre o certo e o errado preconizado pelos provérbios?

Em um ônibus ou metrô lotado, em plena manhã de semana útil, caberia a expressão “Deus ajuda quem cedo madruga”? Será possível que um usuário madrugador não seja ajudado nem mesmo a conseguir uma vaga em um transporte público aboletado e apinhado de gente?

Esses ditos cunhados e lapidados há tempos, de tão usados, se tornam gastos também. Podem não dizer mais nada ou pouco. Chico Buarque, na canção “Bom conselho”, recriou os ditados populares de forma provocativa. Subverteu-os: “Está provado, quem espera nunca alcança”.

Há ditados capciosos, prontos para dar um bote no incauto e distraído ouvinte, como por exemplo, o “mata a cobra e mostra o pau” — que, em seu sentido corriqueiro, atribui ao dono da fala à veracidade incontestável de seu ato, de sua certeza. A expressão é categórica como uma faca no pescoço. Aparentemente, não dá margem a dúvida de que a façanha de matar a cobra seja verídica e incontestável. Afinal, está ali nas mãos do bravo enunciador o pau responsável pelo vaticínio e assassínio do imprudente réptil. A arma é usada como prova irrefutável de uma verdade — ainda que vivamos em tempos em que provas e irrefutabilidade nem sempre andam juntas (às vezes se desgarram e creem que é melhor seguir sozinhas do que mal acompanhadas).

Voltando à verdade absoluta, será que não cabe alguma desconfiança com relação à prova apresentada? Será mesmo prova de assertividade inconteste o pau desferido sobre a serpente?

Analisando a prova tomada como inconsistente, poderíamos exigir mais do enunciador, perguntando-lhe, talvez, se ele não trouxe a cobra morta, e de preferência com marcas das pauladas desferidas. Melhor duas provas na mão do que uma serpenteando por aí, não é verdade?

A língua e o caráter de um povo

A linguagem é muito mais do que um meio de comunicação ou de interação social. Ela é a roupa que veste nossas intenções comunicativas, nossos pontos de vista, nossa capacidade de influenciar, emocionar e questionar. Ao enunciar num idioma e numa determinada sintaxe, não há escapatória. Há apenas um redundante beco sem saída. Somos condenados a ter uma posição. Quando falamos, expomos nossa visão de mundo, revelamos se somos conservadores, machistas, liberais, de direita, de esquerda, moderados, malucos, razoáveis e por aí vai.

A linguagem revela as intenções do usuário — e uma língua, o caráter de um povo. Em nosso idioma, então, a situação se complica, porque ele espelha nossa volubilidade e frouxidão moral. Basta que se solte um “meio proibido” para que coloquemos em dúvida o caráter de uma nação. Ora, caberia a possibilidade de que tenhamos uma situação mais proibida do que outra? Por exemplo, é proibido estacionar sobre a calçada ou é apenas meio proibido? Mas, como somos um povo normativo e trambiqueiro — que gosta de regras, mas ama quebrá-las —, a língua deu um jeito de colocar os pingos nos is, inventar uma proibição de verdade e lavrar com mão nas escrituras a sentença definitiva: “expressamente proibido”.

A nossa conjunção adversativa “mas”, indicadora de oposição e de contrariedade, revela mais do que gostaríamos de dizer. “Não sou machista, mas é que as mulheres…”. Não há dúvida de que a sequência da frase revelará, com cobra morta e pau manchado de sangue, o machismo que se pretende esconder ou atenuar. Basta observar que o “mas” é um reforçador do que se enuncia. Não é diferente dizer, “voto em fulano porque ele rouba, mas faz” ou “não voto em fulano porque ele faz, mas rouba”?

Na selva perigosa da linguagem não há isenção na enunciação, nela não basta alardear o feito sem o bicho.

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