Depois do ensino remoto emergencial, a educação brasileira agora mergulha em discussões sobre um novo modelo cuja implantação foi acelerada pela pandemia da Covid-19: o híbrido. Nele, parte das aulas é feita presencialmente na escola, e outra, em casa.
“É uma mudança radical da escola básica que, acreditávamos, demoraria de 10 a 15 anos. Pois aconteceu da sexta para segunda-feira mesmo”, diz Maria Inês Fini, presidente da recém-criada Associação Nacional da Educação Básica Híbrida (ANEBHI).
O Brasil teve pouco mais de um mês de aulas presenciais quando precisou fechar as escolas em função da pandemia. Estudantes, professores e funcionários estariam agora perto de retornar das férias de julho para iniciar a segunda metade do ano letivo. E a indefinição ainda é grande. Os governos estaduais do Rio e de São Paulo, por exemplo, ainda não têm data para a volta das aulas presenciais.
Na sexta-feira, a Fiocruz divulgou seu “Manual sobre biossegurança para reabertura de escolas no contexto da Covid-19”. Nele, defende que todo retorno às aulas deve considerar eventuais suspensões necessárias para evitar novos surtos.
A ideia central do modelo híbrido— que já conta com recomendação do Conselho Nacional de Educação (CNE) para ser usado com “ênfase” — é a de diminuir o número de alunos em salas de aulas tradicionais para possibilitar distanciamento social e minimizar os riscos de contágio da Covid-19.
Ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Maria Inês Fini explica que não há fórmulas pré-determinadas. Justamente por isso criou a associação voltada para o debate com especialistas.
“O educador precisará usar todos os recursos disponíveis para o hibridismo, que mistura e potencializa as duas opções. Idealizar um modelo único está fora de cogitação. Precisamos nos adequar à população e aos meios disponíveis”, diz.
O ensino remoto emergencial — a forma como as escolas, de forma improvisada, tentaram seguir as aulas após o impedimento dos encontros presenciais pela pandemia do coronavírus — já mostrou a inevitabilidade desta variedade.
Estados mais ricos, como São Paulo, conjugaram modelos tecnológicos, como aplicativos, a tecnologias de gerações passadas, como a televisão. Ainda assim, a adesão ficou em apenas metade dos alunos. Outros estados mais pobres vêm utilizando modalidades como transmissões de rádio.
No Brasil, o ensino híbrido não era permitido na educação básica, mas isso mudou com a pandemia. Em países com experiências consolidadas, como os EUA, já há literatura especializada. Um estudo de 2014 da Universidade de Minnesota, por exemplo, mostrou que é possível reduzir em dois terços o tempo em sala sem prejuízo de aprendizagem.
“(…) podemos ampliar o alcance do número e tamanho limitado das salas de aula de aprendizado presencial, pois importa menos quanto tempo e muito mais o que eles fazem nas aulas(…) Uma sala pensada para atender 126 alunos pode ser utilizada, pelo mesmo número de horas em um semestre, por mais de 375 estudantes”, escrevem Paul Baepler, J.D. Walker e Michelle Driessen, do Centro de Inovações Educacionais da instituição americana. O resultado positivo é alcançado, dizem os pesquisadores, com o que chamam de uso de metodologias ativas de aprendizagem.
Americo Amorim, doutor em Educação pela Universidade Johns Hopkins, nos EUA, concorda. Para ele, o desafio do ensino híbrido é mesmo mais pedagógico do que tecnológico.
“Simplesmente reproduzir a aula expositiva que já faziam no presencial não dá certo”, avalia. A maioria das escolas com ensino híbrido (que funciona) usa a ideia de sala de aula invertida. O aluno assiste a uma aula gravada, lê um texto, ouve um podcast, faz atividades em casa e, quando vai para a escola, tira dúvidas e faz trabalho em grupo. Esse é o modelo de aprendizagem ativa.
Sala de aula
As redes municipais já pensam em formas de revezamento de alunos em sala. Uma possibilidade debatida é a de que metade da turma vá num dia, e metade, no seguinte. Outras já projetam divisão do turno: parte dos estudantes às 7h e 9h, e outra entre 10h e 12h. A forma de aprendizagem em casa ainda está em debate.
Ana Elisa Dumont, vice-presidente do Sindicato das Escolas Particulares do Distrito Federal conta que as unidades privadas de ensino básico têm se reunido para compartilhar novas estratégias e boas práticas.
“Há modelos com aulas gravadas ou a aulas ao vivo transmitidas pela internet. Cada escola escolherá o que lhe for mais adequado”, diz.
Christine Lourenço, coordenadora pedagógica do Pensi, conta que a escola privada, que tem unidades no Rio, está prevendo aulas gravadas de conteúdo seguidas por interação ao vivo entre professores e alunos.
“Até as monitorias serão on-line e presenciais. O ensino híbrido chegou para ficar. Não tem outra opção, e isso é muito benéfico”, afirma Christine Lourenço, que é professora de biologia.
Ao se tratar das dificuldades da adoção ao modelo híbrido, Vinícius Silveira, professor de física do Colégio e Curso de A a Z, acredita que o “pior já passou”, e que o próximo desafio será unir as experiências vividas nas aulas on-line com a experiência presencial.
“Transformar o ensino presencial em ensino à distância exigiu um esforço dos professores nunca visto antes. Mas, após a pandemia, acredito que o modelo híbrido provavelmente se mostrará como solução para muitos outros problemas” comenta o docente.
Depois do avanço da pandemia no país, a escola Saber Viver, em Recife, foi obrigada a entrar no formato de educação on-line. Neste momento em que autoridades políticas das grandes metrópoles já começaram a considerar a retomada das atividades presenciais nas instituições de ensino privadas, o colégio começou a pensar numa forma de passar por essa transição com os alunos, para que eles entendam como funcionará o modelo híbrido.
“Vamos trabalhar com rotações por três estações, que é uma das metodologias do modelo híbrido. A primeira estação é a “estação live”, que é um encontro do professor com os alunos, alguns em sala de aula e outros assistindo de casa, e a ideia é que o docente interaja com os dois grupos. A segunda é a “estação escola”. Nessa etapa, quem estiver presencialmente vai ter uma mediação mais específica, baseada na expertise do professor, enquanto o docente sugere atividades tecnológicas para o aluno que está em casa. E a terceira é a “estação remota”, cujas atividades realizadas pelos alunos serão mediadas pela família”, diz Alena Nobre, orientadora educacional da escola.
Acessibilidade
A previsão de aulas híbridas com máscaras não é nada amigável, no entanto, para alunos surdos.
De acordo com o Censo Escolar do MEC, há cerca de 55 mil estudantes com perda auditiva no país. Criadora do movimento Surdos Que Ouvem, Paula Pfeifer pontua que salas de aula são ambientes difíceis para estes alunos, com ruído de fundo, tratamento acústico precário, professores que falam de costas para turmas e ausência de legendas. E, com a pandemia, os obstáculos só aumentaram.
“O uso das máscaras impede a leitura labial e a falta de acessibilidade digital, já que as escolas não disponibilizam legendas em tempo real para aulas on-line. E os alunos com deficiência auditiva precisam se virar com recursos como o Webcaptioner e o Google Transcriber”, explica Paula. As crianças ainda não alfabetizadas sofrem mais, pois não se pode contar com legendas.
Máscaras com transparência ajudam a resolver o problema da leitura labial e algumas escolas particulares do Rio já estão em busca dos modelos, conta Paula.
“Mas me pergunto como as escolas públicas farão. As dificuldades por que estamos passando agora são singulares e imensas”, diz.
Idealizadora da Escola de Gente, ONG referência em comunicação inclusiva, Claudia Werneck conta que a pandemia gerou escalada na exclusão na Educação.
“É a maior da história. As próprias ferramentas de transmissão ao vivo não têm tecnologia específica para acessibilidade”, diz.
Claudia conta que a Escola de Gente teve que fazer uma “gambiarra tecnológica” para oferecer transmissões com acessibilidade plena. Entidades internacionais já a procuraram, inclusive, para reproduzir o modelo.
“O mundo virtual tem toda possibilidade de se tornar mais acessível que o real. Com mais agilidade, menos custos e mais possibilidades. Mas, para isso, as plataformas de ensino precisam oferecer, ao mesmo tempo, audiodescrição, Libras e legenda. É preciso se levar em conta quantas pessoas com deficiência estão sendo excluídas neste momento”, afirma. Fonte: Jornal O Globo