Com as aulas presenciais suspensas desde março devido à pandemia de Covid-19, os alunos estão fazendo todas as atividades em casa e mães que não concluíram o ensino básico se tornaram professoras da noite para o dia. “Eu estudei só até a 4ª série e vou ajudando no que eu sei”, conta Silvana Lima da Silva, de 33 anos.
Silvana faz parte dos brasileiros com 25 anos ou mais que não concluíram a educação básica, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2018. Números divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 52,6% dos brasileiros nesta faixa etária não possuem o mínimo de estudo esperado, e que 33,1% não terminaram nem o ensino fundamental.
Moradora da Zona Rural de Ninheira, município de Minas Gerais, Silvana é mãe de Jeferson, de 13 anos, e Carlos Eduardo, de 7, ambos alunos de uma escola pública da região. Na cidade em que mora, as atividades escolares são feitas em formato delivery. “As próprias professoras vieram até em casa e trouxeram as tarefas, mas as tarefas são bem difíceis. Eu fui ensinar a eles e a gente pesquisou na internet, porque tem perguntas que eu não entendo”, explica Silvana, que usa os dados móveis do telefone celular para se conectar.
O IBGE também aponta que cerca de 45,9 milhões de brasileiros não tinham acesso à internet em 2018 — número que corresponde a 25,3% da população com 10 ou mais anos de idade. Em cerca de 99,2% dos lares, o celular é o meio mais usado para se conectar.
“Wi-fi mesmo ainda não tem aqui, e computador também não. O meu mais velho vai fazendo cada dia uma coisa, e vai pesquisando na internet na casa da minha mãe. Já o outro, que está na 2º série, eu tenho que ajudar e ir ensinando. Tenho dificuldade em algumas coisas, nas letras cursivas mesmo eu tenho dificuldade, mas mesmo assim vou ensinando o que eu sei”, diz a dona de casa, que não terminou os estudos devido à dificuldade de locomoção até a escola na época.
Carlos Eduardo Lima da Silva tem 7 anos, mora na Zona Rural de Ninheira (MG), e tem ajuda da mãe para estudar na pandemia.
Mesmo com as dificuldades, Silvana faz questão de acompanhar os filhos na rotina escolar, pois o marido passa boa parte do dia fora de casa no trabalho. “Acompanho bastante, pego no pé. Toda a tarefa que vem, mesmo sem saber, eu estou lá do lado”, conta.
Andreia Ferraz da Silva, de 45 anos, vive situação parecida em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo. “Ainda bem que existe esse Google — eu não sei mexer, mas eles sabem e pesquisam tudo lá”. A diarista é mãe de Nicolas, de 16 anos, e Rian, de 9, ambos alunos da escola pública.
Andreia estudou somente até a 8º série incompleta do ensino fundamental. Assim como Silvana, ela ampara os filhos dentro de suas possibilidades. “O que eu sei ajudo. O que eu não sei, ficar sem fazer”, conta a mãe, que precisou ir buscar o material na escola, pois não conseguiu acessar as aulas online. “Eles não conseguirem entrar na plataforma, então tive que ir na escola buscar as atividades e apostilas. Eles não têm professora para tirar dúvidas 24 horas, só quando voltar, então tudo a gente olha na internet, e às vezes dá certo, às vezes não dá”, diz ela.
Andreia está em casa recebendo somente o auxílio emergencial, sem previsão de retorno ao trabalho como diarista. Mas mesmo antes da pandemia, com a rotina cheia entre trabalhar e cuidar dos afazeres domésticos, ela sempre participou da educação dos filhos. “A minha maior dificuldade é matemática. Sou eu quem acompanha em tudo: vou em reunião, ajudo a fazer lições. O pai deles estudou só até o 1º ano do ensino médio incompleto e ajuda como pode”, conta.
Para a diarista, a falta de aulas presenciais, com educadores por perto, prejudica o ensino. “Acho que não está dando muito certo, não, porque tem que ter e explicação da professora, né. Eu ainda lembro bastante coisa, mas está tudo diferente. Eu sei ensinar do meu jeito, como eu aprendi. Não sei se é o certo, mas ensino”, diz ela.
Educação na qual os pais se reconheçam
A dificuldade não é só para os pais. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Península com 2.400 professores da educação básica de todo o Brasil, das redes privada e pública, desde a educação infantil até o ensino médio, incluindo diferentes modalidades como a EJA (Educação de Jovens e Adultos) mostrou que, desde o início da pandemia, esses profissionais relatam ansiedade perante as aulas remotas, além de sobrecarga de trabalho.
Os dados também apontam que na China, primeiro país afetado pela pandemia, aumentou o número de professores com síndrome de burnout (esgotamento, exaustão extrema) nesse período, e que isso também pode acontecer no Brasil. A mesma pesquisa mostra que, mesmo em um cenário de maiores cobranças, 60% dos professores brasileiros ainda dedicam tempo para estudar, fazer cursos e se atualizar.
“O grande problema está no não olhar para o profissional da educação, entende? Eu não sou mãe desses alunos, eu sou uma profissional que estudou muito e com isso conseguiu ter um salário base de R$ 2.800 por 40 horas trabalhadas dentro da escola, e não sei mais quantas fora da escola, porque eu tenho que trazer tudo para casa, tenho que preparar aula em casa, corrigir as atividades”, explica a professora Marcia Raquel Sanches, de 54 anos, que mora e dá aulas em Santo André, região do ABC paulista.
Educadora da rede estadual de São Paulo, Marcia diz perceber muitos pais agoniados sem conseguir ajudar mais os filhos. “Eu já ouvi de pai: ‘Eu sou burro, professora, e não sei nada disso. Não nasci para isso’. E eu sempre explico: ‘O senhor não é burro, não, é que isso é coisa que não usamos todos os dias, vamos juntos aprender'”, diz ela, que leciona história e geografia e também é militante da APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo).
O período de quarentena traz consequências mais graves para os alunos pobres: segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), ficar longe da escola os expõe a riscos maiores de violência física e psicológica, exploração sexual e ao abandono dos estudos. “Eu faço trabalho voluntário em comunidades da região, e às vezes encontro alguns alunos que pedem para não mandar mais lições, porque os pais não conseguem ensinar, se irritam e batem nas crianças”, explica Márcia.
Para ela, pensar a educação também para esses pais sem ensino básico completo, que engrossam uma fatia que envolve a maioria dos adultos brasileiros, é um caminho. “Eu espero que o governo tenha a sensibilidade de, quando isso acabar, fazer um acolhimento para esses pais. Lançar um programa de alfabetização ou de continuidade de educação para o adulto, mas que seja uma coisa que a pessoa, ao entrar, se reconheça nesse processo de educação. Não da forma que faz, de qualquer jeito, mas que seja uma educação na qual o pai, o adulto, se reconheça dentro”, conclui Márcia. Fonte: UOL