A maior parte das pessoas que consulta dicionários busca saber a grafia de uma palavra ou o significado de um substantivo, adjetivo ou verbo. Poucos recorrem a eles para tomar ciência do significado de preposições ou advérbios, muito menos dos afixos (prefixos ou sufixos). Não sabem o que perdem.
Os usuários do português não precisam de dicionário para saber que o prefixo des- não ocorre sozinho, pois “procura” substantivos (desamor), adjetivos (deselegante) ou verbos (desmentir).
No Brasil, o que foi dito está dito; o que falou tá falado. Mas, às vezes, nem tanto: quem desconversa, desdiz ou desmente, na verdade, afirma algo (conversa, diz, mente) e não dá para voltar. Quem desconversa, encobre e disfarça; aqueles que desdizem ou desmentem, na realidade, mentem novamente.
O que está feito está feito. Há, todavia, ações no funcionamento do mundo que são impossíveis de inverter: “Ele vive descaroçando pêssegos e azeitonas”, porque uma vez descaroçados os pêssegos e as azeitonas, não há volta. Uma vez que o leite está desnatado, não há jeito de inverter o processo. O provérbio “Não adianta chorar sobre leite derramado” vai ainda mais fundo, porque há coisas que ocorrem ao longo da vida que são impossíveis de desfazer.
Há casos em que o prefixo des- indica ação contrária: “Carlitos parafusa e desaparafusa porcas na fábrica” ou “O homem passa o dia atarraxando e desatarraxando lâmpadas”.
O trabalho com porcas e lâmpadas representa atividades corriqueiras ou literais. Na mão de quem saiba explorar os recursos do idioma, a situação é outra. Bom exemplo é o conto “O desatarraxador de dívidas”, de José Cândido de Carvalho (Porque Lulu Bergantim não atravessou o rubicon, José Olympio). O desatarraxador é Bebé Reis, cobrador itinerante de “dívidas mortas e sepultadas”, que foi incumbido de “desaparafusar quarenta contos de um tal Pepito Cunha da praça do Cipó dos Índios”. Estamos diante de uma metáfora, pois ninguém na narrativa tem em mãos uma lâmpada ou chave de fenda.
Prazer em desfazer
José Cândido nos brinda com outro jogo linguístico em O coronel e o lobisomem (José Olympio). O simpático coronel Ponciano de Azeredo Furtado ordena a um funcionário que dê explicações: “Sem hora a perder, mandei que desembuchasse”. Em outro momento, ele anuncia uma viagem: “Saí de madrugadinha, na hora em que o fresco da manhã começa a desembuchar”.
O substantivo “bucho” tem vários significados (“estômago”, “barriga”, “ventre” etc.), substantivos referentes a seres vivos. Na primeira oração, “desembuchar” significa “dizer logo o que tem de falar”, ao passo que, na segunda, “o fresco da manhã” na verdade não tem “bucho”, mas os leitores entendem e apreciam a metáfora.
Por que não “brincar” com o idioma nos moldes d´O coronel e o lobisomem? Não poderíamos “desaparafusar mágoas” e “desatarraxar ‘grilos’” que, às vezes, habitam nossas mentes, para podermos ser livres e “destravados”?
Anos atrás, um concurso vestibular usou como tema de redação uma fotografia de uma velha catraca numa praça de São Paulo. Embaixo da “borboleta” enferrujada, as palavras: “Monumento à Catraca Invisível – Programa para Descatracalização da Própria Vida, Junho 2004”.
Nem todos perceberam a crítica sociopolítica subjacente e muitos desconheceram o revestimento da palavra “catraca” em neologismos como “descatracalizar” e “descatracalização”.
Descatracalizar o mundo
Virar a catraca de um ônibus é uma coisa, mas há outras catracas na vida, travadas para alguns cidadãos, mas destravadas para os desprivilegiados: dificuldades, como a falta de oportunidades de emprego, estudo e moradia. A existência de preconceito e intolerância com base em raça, religião, região e identidade sexual, de fato, “catracaliza” a vida de muita gente.
Os problemas de alguns com a recepção dos neologismos com des- (“descatracalizar” etc.), me levam a acreditar que o ensino do léxico não recebe a atenção que merece. Para alguns estudantes, a disciplina de língua portuguesa é a mera memorização de uma lista de estruturas gramaticais e sintáticas que devem ser evitadas.
Com respeito aos verbos de origem nominal (descortinar, desvendar, desvencilhar), é mais fácil identificar a raiz ou base nominal do primeiro exemplo (cortina). Mas o que significa? Em que contexto poderia ser usado? “Desvendar” pode levar o incauto a afirmar que a base é o substantivo “venda1” (trocar ou transferir algo por dinheiro) e quando se trata de “um pano usado para cobrir os olhos das pessoas”, temos “venda2”, um bom exemplo de homógrafo e homófono.
Mais complicado para alguns é “desvencilhar”, cuja base nominal é “vencilho” (ligadura para atar objetos). Literalmente, é “soltar ou desatar os vencilhos”. Mas o que falta no ensino do léxico é conhecer o sentido figurado dos vocábulos: “desvendar os segredos”, “desvencilhar as tramas de um discurso político”.
Sentidos
É obvio que “descortinar” se refere ao ato de tirar ou abrir cortinas, mas o conhecimento vocabular deve ir além. Quem descortina pode avistar à distância algum objeto ou pode perceber o que não é evidente aos outros. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Academia das Ciências de Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e Editorial Verbo) exemplifica: “Descortinou um barco que aproximava”.
É importante, no ensino, o estudo das acepções figuradas do léxico e, por outro, mais atenção aos afixos (prefixos e sufixos) da língua. Eles que permitem a expressão de diferentes significados. Um ponto positivo é que os principais dicionários do português têm aprofundado a descrição dos afixos. O estudo deles é parte essencial do vocabulário. Notem o papel que os prefixos fazem com uma reles base nominal, como “terra”: aterrar, enterrar, desterrar, desenterrar e desaterrar.
É um mundo que se descortina com um mero prefixo.