A 4ª Vara do Trabalho de São Paulo condenou a Uber do Brasil nesta quinta-feira (14) ao pagamento de multa de R$ 1 bilhão por danos morais coletivos, e obrigou a empresa a contratar todos os motoristas ligados à plataforma pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
A notícia caiu como uma bomba no mundo dos autônomos de aplicativos de transporte e seus usuários, reacendendo a discussão da aplicabilidade das leis trabalhistas brasileiras ao mundo atual.
A Uber logo manifestou-se contra a decisão, dizendo que não pretende adotar nenhuma medida antes que todos os recursos estejam esgotados, mesmo porque associações de motoristas se manifestaram dizendo que eles não querem ser contratados pela CLT. Mas isso não significa que estejam satisfeitos com as atuais condições de trabalho.
No andamento das tratativas, os aplicativos de transporte — como a Uber e 99 — vão manter a proposta de fixar uma remuneração aos motoristas de R$ 30 por hora trabalhada, sem vínculo empregatício, informou à CNN uma fonte próxima das negociações.
Embora trabalhadores por aplicativo e plataformas ainda não chegaram a um consenso referente à regulamentação da categoria, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), diz que que é necessário mais tempo para debater as propostas. Em nota, a associação informou que participa do Grupo de Trabalho Tripartite criado pelo Governo Federal para debater a regulação do trabalho intermediado por plataformas tecnológicas.
Por sua vez, o Ministério do Trabalho e do Emprego encaminhou um comunicado à CNN informando que estão sendo feitas conversas bilaterais, e que a expectativa é que nos próximos dias “seja apresentado ao presidente o documento com as tratativas de ambas as categorias.”
A Uber já se manifestou em outras ocasiões sobre a questão, em nota: “O posicionamento da empresa foi construído após pesquisas realizadas pelo Instituto Datafolha tanto com motoristas e entregadores, que rejeitaram o vínculo empregatício e apontaram a flexibilidade de trabalho como principal atrativo dos aplicativos, quanto com a população brasileira, que revelou apoiar mudanças para ampliar a cobertura da Previdência aos trabalhadores via aplicativos.”
Embora a condenação da Justiça Trabalhista de São Paulo seja diretamente para a Uber, o que quer que aconteça com ela pode gerar embasamento jurídico para as demais plataformas de transportes e entregas, como Ifood, Rappi, Loggi, entre outras.
O trabalho de motoristas por aplicativo poderá ser regulamentado ainda neste ano no país. Um grupo de trabalho que discute a regulamentação das categorias está debatendo o tema, após esse ter sido um dos compromissos de campanha do presidente Lula.
A intenção é dar a esses trabalhadores direitos semelhantes aos da CLT, como aposentadoria, jornada de trabalho, descanso semanal remunerado e seguro. No entanto, profissionais e aplicativos não chegaram a um acordo sobre o modelo de remuneração.
A legislação brasileira é uma das que mais protege o trabalhador no mundo. Entre muitos itens de segurança social, benefícios como férias remuneradas de 30 dias (e ainda com um adicional de um terço) já a partir de um ano de admissão não são oferecidos em outros países.
Tudo isso tem um custo, pago pelos próprios profissionais e principalmente pelas empresas. Via de regra, para cada real pago em salário ao funcionário, a empresa gasta outro com os encargos trabalhistas.
O peso dos encargos e de outras obrigações trabalhistas já provoca mudanças no perfil de contratações no Brasil. Cada vez mais as empresas procuram, sempre que possível, trocar o modelo da CLT por terceirizações de empresas com um único funcionário, os famosos “PJ”. Com isso, os empregadores se livram de encargos e burocracia, e têm o profissional à disposição.
Alguns trabalhadores também preferem esse formato, principalmente quando isso lhes proporciona flexibilidade, principalmente de horário. É o caso dos profissionais por aplicativos, como motoristas e entregadores, que podem trabalhar ao mesmo tempo para muitos contratantes.
O principal conflito entre as regras da CLT e as de aplicativos é que a primeira considera o profissional um empregado, enquanto a segunda o vê como um autônomo ou prestador informal. Essa flexibilidade tornou-se tão valorizada por trabalhadores de diferentes áreas, que muitos abrem mão da proteção e dos benefícios da CLT por ela.
Não há dúvida que esse modelo, também chamado de economia compartilhada, é um fenômeno consolidado e que traz muitos benefícios a prestadores e a clientes. Fica difícil pensar na vida moderna sem empresas como Uber, Airbnb, Mercado Livre, iFood ou Rappi.
É importante lembrar que, quando a Uber começou a operar no Brasil, em 2016, a empresa ficava com apenas 7% das corridas (hoje pode chegar a 50%) e oferecia muitos bônus aos motoristas. As corridas eram baratas e o serviço de alta qualidade.
Enquanto entidades de trabalhadores e aplicativos buscam elaborar uma proposta para regulamentar as atividades executadas por meio de plataformas, as velhas questões permanecem.
No caso da Uber, os motoristas possuem algumas características de uma relação clara de emprego, como estar subordinados a um algoritmo das empresas que gerencia e avalia o trabalho.
Ao mesmo tempo, seguem o modelo de flexibilidade. Ninguém obriga o entregador ou o motorista a estarem logados em determinado horário e local.
No Reino Unido, por exemplo, a Suprema Corte decidiu em 2021 que os motoristas eram “trabalhadores”, categoria profissional no Reino Unido que faz com que tenham direito a salário mínimo, férias e aposentadoria. Demais países pelo mundo seguem, assim como o Brasil, pensando na melhor definição para dar a estes trabalhadores.
Um dos problemas apontados por especialistas é a falta de regras quanto à contribuição previdenciária de trabalhadores do setor. Isso os deixa desprotegidos em casos de acidente ou de doenças que exijam afastamento do trabalho. Também não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para dependentes.
Uma reportagem da BBC News Brasil mostrou que apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS, segundo estudo de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, os outros 77%, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, estão desprotegidos.