Santa Catarina tem o maior número de casos de injúria racial do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado no fim do ano passado. Por causa do dado alarmante e sabendo do esforço que a população catarinense faz para mudar esse cenário, a pedagoga Jaque Conceição criou a primeira escola do Brasil com foco em educação feminista e antirracista, que virou referência para a ONU. Paulistana radicada em Florianópolis, Jaque fundou e coordena na cidade a plataforma Coletivo Di Jejê, de ensino à distância.
“Somos uma escola antirracista cuja práxis está baseada na ideia de que é preciso a voz dos negros, das mulheres pretas, das trans, dos indígenas serem ecoadas, potencializadas e colocadas em seu devido lugar, inclusive o de destaque”, diz. “Não é pensar a dinâmica racial do Brasil e recorrer ao (sociólogo) Florestan Fernandes que tratou do negro na sociedade de classes. É um processo de interlocução que nos leva a pensar no conhecimento de outras maneiras, pensar nos marcadores, mas de outro lugar”, explica Jaque que, há seis anos, criou um coletivo que, num primeiro momento, oferecia cursos com as mesmas temáticas no quintal da sua casa. Espécie de embrião da escola que, hoje, conta com quatro professores — todos pretos — que trabalham com questões étnico-raciais a partir do feminismo negro.
São 85 cursos focados em pensadoras contemporâneas como Angela Davis e Conceição Evaristo, desde R$ 70 (aulas avulsas) até R$ 600 (pacote anual). Com mestrado na PUC-SP em Educação, História Política e Sociedade, ela conta que, enquanto pesquisadora no ambiente acadêmico, sentiu falta de discussões étnico-raciais.
“Sentia falta deste espaço de produção e valorização de narrativas negras, experiências negras. Não como um fetiche da branquitude, que diz que gosta para não serem vistos como racistas. Mas algo de negros e para negros. A necessidade de criar um espaço de formação permanente a partir da proibição, em que esta narrativa intelectual ou diversidades de narrativas tivessem espaços e prioridade. Onde não fossem apenas tratadas como enfeite acadêmico ou um recurso de inclusão de diversidade, mas com um peso teórico que tem intelectuais brasileiros, latinos, europeus e africanos”, acrescenta.
O espaço físico da instituição é a Casa Preta, onde Jaque pretende continuar com os cursos implementados na pandemia, além de manter a grade virtual. Nestes seis anos, a escola formou mais de oito mil alunos e alunas de vários lugares do mundo.
A fundadora é consultora da ONU para questões de gênero e muito do seu trabalho tem a ver com sua experiência em educação para ativistas. Para ela, a ideia de uma escola antirracista fala de um espaço de formação que parte do conhecimento da comunidade negra e afro-diaspórica sobre as demandas desta mesma comunidade.
“Coloca o conhecimento a partir de autores negros, para entender o racismo a partir destes intelectuais. A gente vive da venda dos cursos. Em 2017, num encontro promovido pelo movimento negro da ONU, conheci diversos coletivos e experiências jovens de afro-alemães num espaço em que eles propunham práticas arte educadoras para o enfrentamento ao racismo institucional e estrutural na Alemanha. Sem lucro, autogestão, como em nosso caso”.
Nas leis da educação brasileira, somente cursos de graduação e pós-graduação necessitam de aval do MEC, o que não é o caso da Di Jejê, que só oferece cursos livres. Porém, tornar a Casa Preta uma faculdade é uma das metas da equipe que, segundo Jaque, deve dar início ao processo em novembro. Para isto, ela informa, são necessários R$ 170 mil, entre taxas e custos operacionais.
“Isto pode levar até dois anos ou mais. Vamos implantar cursos de graduação e pós na área étnico-racial. Para nós, é muito importante porque é dentro das universidades que se constrói o conhecimento e se mantêm vivas as narrativas de opressão e o pagamento de intelectuais negros”.
Feminismo negro
Aos 35 anos e mulher preta, Jaque Conceição mora com dois filhos. Ela nasceu no Brasilândia, bairro localizado no extremo-norte de São Paulo, onde iniciou sua militância feminista e antirracista.
“Nasci num território muito violento, uma área de ocupação, com projeto voltado para formação política para adolescentes. Cresci neste espaço político, com muita violência, mas também com toda esta potencialidade política. Desde os meus 10 anos, milito politicamente. Fui professora da rede pública”, conta.
Jaque acrescenta que criou o que, do ponto de vista político e pedagógico, chama de roda de feminismo negro que trata de questão da experiência.
“No Terreiro de Candomblé por exemplo, eu sou uma mulher de terreiro, o mais velho se ajoelha junto com o mais novo para juntos repassarem um banho de folhas. Diferente da escola, onde o professor manda todo mundo sentar e abrir o livro. Então, se pegar a masculinidade negra, a gente vai trabalhar a partir das experiências dos participantes e trazer as teorias como tencionador para ir para além”.
A pedagoga afirma que toda pessoa negra, mesmo quem não se percebe negra ou entenda isto, já sofreu algum ataque racista, “do mais simples, como alguém te perseguir num mercado, ao mais violento, como te chamarem de macaco ou, pior, pichar uma suástica na sua porta”.
“Apesar de ter crescido num bairro negro, eu só fui entender a existência do racismo na PUC, onde passei por situações de professoras me confundindo com faxineira. Uma vez no elevador, um professor colocou uma bolinha de papel dentro do meu copo de café e falou “Benzinho, joga no lixo para mim, por favor”. Me senti um lixo, porque foi exatamente desta forma que ele me viu ali naquele elevador. Muito sofrido estar naquele espaço por dois anos”.
Para ela, em todo lugar que houver capitalismo sempre haverá racismo.
“Estamos falando de um sistema que precisa da dominação social de um grupo por um outro grupo para que seus mecanismos de controle e opressão sobrevivam. No Brasil, as classes sociais são classes raciais. Não dá para pensar num sistema todo baseado na lógica do lucro e pensar num espaço livre de marcadores de opressão e diversidade. O que está colocado são lugares onde há mais ou menos práticas racistas e o quanto sociedades criam formas de educação para lidar com o racismo. De todos os lugares onde que passei, foi na Alemanha onde sofri menos racismo. Não quer dizer que não haja racismo, mas um esforço de uma parte da sociedade para suprimir a prática do racismo. Diferente do Brasil, onde a gente nem reconhece que é racista, a gente coloca no colo da comunidade negra resolver este problema histórico mantido pela branquitude”. Fonte: Jornal O Globo