Notícias

Descubra como as farmácias estão usando seu CPF para descontos fictícios e o risco dos dados sensíveis

As farmácias brasileiras têm adotado uma prática controversa nos últimos anos: ao realizar uma compra, os consumidores são solicitados a fornecer seu CPF sob a condição de obter descontos significativos nos preços dos produtos. Essa prática, comum na maioria dos estabelecimentos farmacêuticos, chamou a atenção dos consumidores e das autoridades.

No entanto, essa prática abusiva não passou despercebida. Em Minas Gerais, a Drogaria Araujo S/A foi condenada a pagar uma multa de quase R$ 8 milhões por condicionar descontos ao fornecimento do CPF do consumidor no momento da compra, sem oferecer informações claras e adequadas sobre a abertura de cadastro do consumidor. Essa decisão foi tomada pelo Procon-MG, órgão integrante do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), após investigação dos fatos e recusa da empresa em corrigir sua conduta.

De acordo com o órgão, essa prática viola o direito do consumidor à informação clara e adequada sobre o serviço oferecido e os riscos à segurança de dados, especialmente ao capturar informações pessoais sem o consentimento prévio.

Além disso, conforme o Código de Defesa do Consumidor, a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deve ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

Decisão da Justiça de Minas Gerais

O promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte, Fernando Ferreira Abreu, concluiu em um processo administrativo que o objetivo principal desse suposto programa de fidelidade é captar os CPFs dos consumidores e não desenvolver um programa real de vantagens ou fidelidade. Essa prática configura abuso, pois a concessão de descontos não pode estar condicionada ao fornecimento de dados pessoais.

A decisão destaca que as palavras “capturar” e “captar” os CPFs dos consumidores constam até mesmo de documentos internos da empresa. O promotor ressalta que a captura constante dos hábitos de consumo do consumidor de forma oculta e sem informação prévia representa um sério risco à intimidade e à vida privada do consumidor, além de sujeitá-lo a diversos tipos de ameaças.

Por exemplo, em caso de vazamento de dados, as informações de compra de medicamentos podem ser utilizadas por operadoras de planos de saúde ou seguradoras para negar cobertura, seguro ou indenização. Apesar da multa aplicada à Drogaria Araujo em Minas Gerais, essa prática continua ocorrendo na mesma empresa e em outras pelo país.

Uma reportagem inédita publicada pelo UOL em 1º de setembro de 2023 revela uma investigação jornalística nas empresas do Grupo RaiaDrogasil, a maior rede de farmácias do Brasil. Segundo a reportagem, o grupo possui um banco de dados com 15 anos de informações acumuladas de 48 milhões de consumidores.

A jornalista responsável pela investigação, Amanda Rossi, apresenta seu próprio caso como exemplo e descobre que desde 2009 a rede armazena dados sobre ela, totalizando 39 páginas de documentos com todos os tipos de compras realizadas ao longo dos anos.

Essas informações são utilizadas por uma empresa do mesmo grupo, a RD Ads, para obter lucro com anúncios direcionados. Anunciantes entram em contato com a RD Ads e escolhem o público-alvo desejado, e a empresa faz uma busca no banco de dados da RaiaDrogasil.

A publicidade é direcionada com base nos hábitos de consumo dos clientes. Segundo a jornalista, o procedimento para abrir o banco de dados da empresa é o mesmo utilizado pela Drogaria Araujo, ou seja, o fornecimento do CPF dos consumidores. A promessa é que, ao fornecer o CPF, o cliente terá descontos de até 70% no preço dos produtos. No entanto, esse preço sem desconto é meramente fictício.

Como é feito a captura do CPF

Para ilustrar, a reportagem apresenta o preço de uma caixa de um anti-inflamatório genérico (Nimesulida) que, sem o desconto, custa R$ 31,78, mas com o CPF, o preço cai para R$ 8,50, ou seja, um desconto de 73%. Segundo a reportagem, o preço de R$ 31,78 não existe, pois esse medicamento é bem mais barato.

Vale ressaltar que o preço dos remédios no Brasil é regulado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), ligada à Anvisa, e o preço apresentado pela rede de farmácias é o preço máximo autorizado pela agência.

Caroline Miranda, pesquisadora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirma que as farmácias se aproveitam dos valores elevados da tabela da CMED, que são fictícios, e concedem descontos sobre eles, fazendo com que os consumidores tenham a falsa impressão de que estão pagando muito menos.

Essa reportagem traz à tona uma denúncia grave contra essas empresas, uma vez que os dados armazenados nelas são extremamente pessoais. No banco de dados de uma farmácia, por exemplo, é possível saber se um consumidor possui doença crônica, doenças sexualmente transmissíveis, doenças degenerativas, orientação sexual, uso de medicamentos controlados, compra de medicamentos para impotência sexual, preservativos, anticoncepcionais, problemas de saúde, entre outras informações, já que as drogarias vendem quase tudo hoje em dia.

Lei do Cadastro Positivo

A Lei nº 12.414/11, conhecida como Lei do Cadastro Positivo, proíbe a anotação de informações sensíveis, como origem social e étnica, saúde, informação genética, orientação sexual e convicções políticas, religiosas e filosóficas. De acordo com essa lei, as informações presentes no cadastro de uma farmácia são consideradas sensíveis, uma vez que envolvem informações sobre saúde, genética, orientação sexual, entre outras.

Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) estabelece o respeito à privacidade, à inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, bem como o princípio da autodeterminação informativa. Além disso, define como dados sensíveis aqueles relacionados à origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou organização de caráter religioso, filosófico ou político, dados referentes à saúde, vida sexual, dados genéticos ou biométricos, quando vinculados a uma pessoa natural.

A LGPD também estabelece que o tratamento de dados pessoais sensíveis só pode ocorrer com o consentimento específico e destacado do titular ou de seu responsável legal, para finalidades específicas. No entanto, nas farmácias, o CPF é solicitado para obtenção de descontos, e o consumidor não é informado de que está sendo criado um banco de dados sobre ele.

Essa lei também determina que a comunicação ou o uso compartilhado de dados pessoais sensíveis entre controladores, com o objetivo de obter vantagem econômica, pode ser proibido ou regulamentado pela autoridade nacional, ouvidos os órgãos setoriais do Poder Público.

Além disso, o artigo 11, §4º, da lei proíbe a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis relacionados à saúde, com o objetivo de obter vantagem econômica, exceto em casos de prestação de serviços de saúde, assistência farmacêutica e assistência à saúde.

Código de Defesa do Consumidor (CDC)

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece como direito básico do consumidor a informação clara e adequada sobre qualquer aspecto que envolva a relação de consumo. O CDC também determina que a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deve ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

Outro ponto importante da discussão é que a reportagem do UOL apresenta um registro de 15 anos, um prazo muito longo para manter um cadastro ou banco de dados. O CDC estabelece um limite de cinco anos para os arquivos de consumo.

Em resumo, diversas práticas abusivas são realizadas por esse setor empresarial que armazena informações sensíveis dos consumidores. A exigência do CPF para obtenção de descontos fictícios, os próprios descontos fictícios, a abertura de um cadastro de consumo sem conhecimento prévio ou consentimento do consumidor, o uso desses dados sem o conhecimento do consumidor, a obtenção de vantagens econômicas com dados sensíveis dos consumidores e a manutenção desses arquivos de consumo por um período tão longo demonstram a falta de informação e transparência, princípios fundamentais do direito do consumidor.

Espera-se que, com a denúncia apresentada por essa reportagem e pelos próprios consumidores, essa prática se torne proibida ou mais transparente para todos os envolvidos. É importante proteger a privacidade e a segurança dos dados pessoais dos consumidores, garantindo que as empresas sigam as leis e os princípios do direito do consumidor.