Visões extremistas sobre a história das palavras tendem a considerar que o percurso diacrônico (histórico) de cada palavra é tão individual que não é possível fazer generalizações.
Embora os caminhos de entrada de inovações na língua sejam variados, é possível identificar padrões recorrentes. Vejamos dois exemplos recentes no português: “X-9” e “araponga”.
X-9
“X-9” remonta ao codinome do protagonista da HQ Secret Agent X-9, dos americanos Dashiell Hammett e Alex Raymond, publicada no Evening Journal de 22 de janeiro de 1934.
No princípio sem nome informado, o personagem passa a chamar-se Phil Corrigan a partir dos anos 40. No Brasil, as tiras foram editadas, já em 1934, na revista Suplemento Infantil, da editora Grandes Consórcios de Suplementos Nacionais de Adolfo Aizen, precursora da Editora Brasil-América (Ebal) de 1945. Passaram a ser editados por O Globo em 1941, e pela Rio Gráfica Editora (RGE) de 1952.
O termo, portanto, era originalmente um neologismo por empréstimo linguístico do inglês.
Araponga
“Araponga” deriva, segundo o Houaiss, do tupi gwïra’ponga (ave sonante), forma atestada desde o século 16 para uma espécie de pássaro (Procnias nudicollis).
O sentido de “agente secreto” remonta ao protagonista da novela Araponga, de Dias Gomes, Lauro César Muniz e Ferreira Gullar (Rede Globo, de 15/10/90 a 29/3/91).
O protagonista era o detetive atrapalhado Aristênio Catanduva (Tarcísio Meira).
A escolha do codinome foi motivada pelo fato de agentes de informação do SNI terem o hábito de adotar codinomes inspirados em animais e insetos:
“Parecia-nos realmente gaiato um agente secreto adotar o nome de um pássaro cujo berro metálico ecoa por quilômetros de mata. Quem viu a novela deve lembrar que o personagem, uma vez finda a ditadura, não tinha mais a quem alcaguetar nem torturar (isso de torturar era uma licença poética, que fundia o SNI com o DOI-Codi) e, por essa razão, trancado em seu quarto, torturava-se a si mesmo e depois sorvia leite de uma mamadeira.” (Ferreira Gullar, “Arapongas”, Folha de S. Paulo, 29/1/2006).
O termo, portanto, é um neologismo por mudança semântica (metafórica).
Paralelo
A comparação entre a história dos dois termos parece reiterar a ideia de que cada palavra tem história própria, mas isso não significa que haja nenhuma semelhança entre os caminhos percorridos.
- Ambos têm hoje carga semântica negativa. Com “X-9” houve processo de pejoração, pois a forma carregava carga positiva quando associada a “agente secreto” e hoje significa “informante”. “Araponga” foi intencionalmente criado para representar, de forma cômica e negativa, agentes secretos.
- Nos dois casos, o neologismo deu um passo semântico na direção de um processo de conversão de nome próprio (os codinomes) em comum: passou-se de (codi-)nome específico de personagem de ficção para nome de uma classe de pessoas.
É interessante averiguar quanto tempo cada um levou para passar de nome próprio a comum: haverá diferença ou semelhança nesse aspecto? A resposta pode ser obtida por um passeio pelos acervos digitalizados, como os de O Globo e O Estado de S. Paulo.
A comparação permite incluir a questão geográfica: onde terão começado as inovações?
História
No caso de “X-9”, a história é bem complexa. Os quadrinhos do Agente Secreto X-9 inspiraram, por exemplo, o nome da Escola de Samba X-9 (fundada em 1o/5/44), de Santos, que deu origem ao da Escola de Samba Filhotes da X-9 (de 12/2/75), de São Paulo, renomeada como X-9 a partir de 1986.
Vinculada ao sentido original de “agente secreto”, a forma foi usada em meados da década de 80 em O Globo (22/11/85), como codinome de policial acusado da morte do padre Henrique Pereira, na Recife de 1969 (o assassinato seria uma forma de os agentes do Dops intimidarem D. Helder Câmara em suas ações contra a violência do regime: Henrique era assessor de Câmara).
Aparentemente, o termo só passou a significar “informante” um pouco depois: em O Globo de 12/8/87, lê-se o título “Policiais agridem jornalistas para proteger ‘X-9’ que atacou mendigo”.
Em O Estado de S. Paulo, um artigo começa com “Um X-9 ligado ao tráfico de entorpecentes e alguns amigos mataram ontem de madrugada seis pessoas de uma mesma família.” (30/6/88).
Contexto
Como a matéria do Estadão é da sucursal do Rio, reforça-se a hipótese de que o neologismo semântico tenha origem no Rio de Janeiro (já que tinha aparecido quase um ano antes n’O Globo).
O processo de pejoração parece ter ocorrido em razão de o termo ser usado por agentes da repressão na ditadura: foi com o término do regime (e da censura) que a mudança semântica pôde implementar-se de vez.
No caso de “araponga”, a 1ª atestação do uso do termo como personagem da telenovela aparece n’O Globo (16/8/90) e só depois n’O Estado de S. Paulo (7/9/90), antes mesmo da estreia, em 15 de outubro.
Seu uso aplicado em contexto diferente do da novela vai aparecer n’O Globo (30/3/91) um dia após o término do folhetim, em referência a funcionário do Serviço de Informações da embaixada americana.
A mesma coisa ocorreria um pouco mais tarde n’O Estado de S. Paulo (2/6/91), referindo-se a pessoa atuando na guerra comercial entre duas companhias aéreas americanas.
A discrepância no tempo de emergência e difusão dos neologismos pode ser explicada com base na natureza do principal meio de divulgação: “X-9”, mídia impressa, língua escrita; “araponga”, mídia televisiva, língua oral.
Em ambos os casos, o neologismo aparece primeiro em jornal do Rio e só depois no de São Paulo, refletindo assim a situação carioca como fonte de influência linguística em fins do século 20.
Deve-se ponderar que o material para o estudo aqui realizado foi escrito (periódicos) e, sendo a língua escrita mais conservadora, é possível que a data de emergência desses dois neologismos seja mais recuada.
Ainda assim, a diferença na velocidade da emergência e difusão dos neologismos terá existido em razão da diferença nos meios de divulgação das formas (escrito x oral).