O Superior Tribunal Militar (STM) decidiu considerar como dolo eventual um disparo de arma de fogo efetuado por um soldado contra um colega no Quartel General do Exército em Brasília.
Com a decisão proferida na Apelação 7000628-13.2019.7.0.0000, o Tribunal condenou o militar a quatro anos de reclusão e reformou a sentença da primeira instância da Justiça Militar, que havia condenado o militar a dois anos de detenção por homicídio culposo.
Segundo a denúncia, em março de 2016, o denunciado e a vítima iniciaram o serviço no mesmo horário e acautelaram na reserva de material, cada um, uma pistola Beretta 9mm com um carregador e 15 (quinze) munições.
Logo depois, os dois dirigiram-se para o banheiro do alojamento de cabos e soldados do Grupamento Ómega (Seção de Segurança da Base Administrativa) do Quartel general do Exército, em Brasília.
De acordo com a versão do denunciado, ao prestar declarações na 3ª Delegacia de Polícia, iniciaram uma “brincadeira” com as armas, cada um deles apontando a arma para o outro.
Foi quando o acusado efetuou um disparo que atingiu e matou outro soldado. Segundo o Laudo Pericial Cadavérico, o projétil transfixou a vítima entre a narina e o lábio superior, saindo pela nuca.
Inicialmente, o acusado tentou forjar um suicídio e, para isso, modificou o cenário do crime, trocando a sua arma com a da vítima, fato que posteriormente foi descoberto pela perícia.
Porém, no decorrer do processo judicial, o próprio soldado confessou a autoria do disparo.
Assim, o réu relatou que o outro soldado, vítima do disparo, se encontrava em pé em frente ao seu armário, manobrou o ferrolho, apontou sua arma de fogo na direção dele e puxou o gatilho uma única vez, tendo pronunciado a frase: “Aqui eu desenrolo”.
Diante disso, o réu narrou que imediataamente sacou a arma de fogo que trazia no seu coldre, apontou para o colega, fez o movimento de ferrolho acionou o gatilho.
Em sua defesa, o acusado disse acreditar que a arma de fogo se encontrava sem o carregador, tendo em vista que é costume entre os militares retirar o carregador da arma antes de entrar naquele banheiro, já que o local é utilizado também para o descanso de todos.
Ao escutar o barulho, o réu afirmou não acreditar que este tivesse sido produzido por sua arma de fogo, mas sim pela arma da vítima.
O Conselho Permanente de Justiça para o Exército, por unanimidade, julgou parcialmente procedente a denúncia do Ministério Público Militar: embora o órgão acusador pedisse a condenação pelo crime de homicídio com dolo eventual (artigo 205 do CPM), o órgão julgador condenou o réu à pena de dois anos de detenção pelo crime de homicídio culposo (artigo 206, caput, do CPM).
Com efeito, o Conselho entendeu não ser possível concluir que o réu havia agido com dolo eventual, uma vez que o autor do disparo pediu ajuda via rádio, indicando que ele não desejava o óbito do soldado.
Além disso, o Conselho levou em conta o fato de que o denunciado ainda sofria de estresse pós-traumático três anos após o incidente, não tendo conseguido retomar às suas atividades rotineiras:
“Saliente-se que a tentativa do acusado em tentar fazer parecer que se tratava de um suicídio, e não homicídio, não tem o condão de, por si só, convolar uma conduta culposa em dolosa. Em verdade, o que deve ser investigado para a correta capitulação da conduta é o animus do agente. Nesse contexto, adentra-se na difícil seara de diferenciação entre dolo eventual e culpa consciente. No primeiro, o agente prevê determinado resultado, embora não o deseje inicialmente, e mesmo assim decide agir, não se importando se a consequência prevista ocorrerá ou não. Já no segundo, o agente prevê um resultado que lhe é indesejado, mas permanece atuando por acreditar, firmemente, que este não ocorrerá”, concluíram os juízes do Conselho na sentença.
Diante da condenação por homicídio culposo (artigo 206 do CPM), o Ministério Público Militar (MPM) apelou ao STM a fim de que o tribunal reconsiderasse a decisão da primeira instância e determinasse que o réu fosse condenado por homicídio simples (artigo 205 do CPM).
Segundo o órgão acusador, não se tratava de “um tiro acidental culposo por imprudência, negligência ou imperícia, tampouco houve culpa consciente, mas sim revelou-se um disparo totalmente previsível ante todos os atos pré-executórios adotados pelo sentenciado, instantes antes do disparo em si”.
Por sua vez, a defesa alegou que não havia nos autos prova da existência do crime tipificado na denúncia e, subsidiariamente, requereu a tipificação do artigo 206 do CPM, pelo fato de inexistir material probatório do dolo eventual.
Ao julgar o caso, o relator do processo, ministro Péricles Aurélio Lima de Queiroz, decidiu classificar a conduta do acusado como homicídio simples, na modalidade de dolo eventual (artigo 205 do Código Penal Militar).
Em seu voto, o relator afirmou que a culpabilidade é uma categoria fundamental no direito penal e, para determiná-la, é necessária a presença do elemento subjetivo que, no caso em questão, é a intenção de matar.
“Dessa forma, o dolo eventual se configura ao assumir ou incrementar o risco de violar o bem jurídico tutelado mediante arma de fogo, ainda mais, quando sabedor das potencialidades lesivas do armamento. Os critérios para se alçar a tipicidade penal, além da ação e do nexo causal, dependem de duas premissas básicas, quais sejam: a criação ou o aumento de risco não permitido; e a realização ou concretização desse risco. Dolo eventual é a modalidade em que o agente não quer o resultado, por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo”, concluiu o ministro.
Segundo testemunhas, o acusado já havia sido visto brincando com armamentos, o que aumentava consideravelmente o risco de ocorrer algum dano a um de seus colegas.
O relator também descartou o estresse pós-traumático sofrido pelo réu como fator de inimputabilidade (não poder responder pelo crime).
Para embasar o seu voto, o relator citou julgados anteriores do STM que são convergentes com o seu entendimento.
Segundo a jurisprudência do Tribunal, ao apontar uma arma de alto calibre em direção a outra pessoa, o militar assume o risco de produzir o “resultado morte” e, se por um lado esse resultado não é esperado, ele é ao menos previsto, configurando-se o dolo eventual.