No julgamento do Processo n. 0000165-70.2019.5.10.0004, a Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10) converteu em rescisão indireta o pedido de demissão de uma recepcionista com déficit cognitivo congênito que trabalhou por mais de oito anos para um restaurante que não recolhia, em seu favor, as parcelas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Para o relator do caso, desembargador José Ribamar Oliveira Lima Júnior, essa circunstância, aliada às condições pessoais da trabalhadora, permite concluir que o pedido de demissão teve por fato gerador essa grave infração legal e contratual.
Portadora de déficit cognitivo congênito, a trabalhadora conseguiu, por intermédio da APAE/DF, ser admitida no restaurante em junho de 2010 para exercer a função de recepcionista.
Em 2018, ao ter conhecimento por meio de sua mãe de que a empresa não efetuava o recolhimento de seu FGTS, a trabalhadora pediu demissão.
Ao acionar a Justiça para pedir a conversão, ela alega que não sabia que podia pedir a rescisão indireta do contrato de trabalho pelo descumprimento das obrigações trabalhistas por parte da empregadora.
Em defesa, a empresa afirma que o pedido de demissão foi sem vício e se deu por exclusiva e livre vontade da trabalhadora, que queria prestar serviços em outra função e local.
Ao negar o pleito de conversão da demissão em rescisão indireta, a juíza de primeiro grau salientou, na sentença, que não cabia o argumento de desconhecimento da figura jurídica da rescisão contratual.
Segundo a magistrada, da mesma forma que a trabalhadora – maior de idade e não curatelada pela mãe – procurou um advogado para representá-la na ação trabalhista, poderia ter se certificado de seus direitos antes de tomar uma atitude drástica como se desligar da empresa que, como afirmado na própria carta de demissão, recebeu apoio ao longo do período em que nela trabalhou.
No julgamento do recurso dirigido ao TRT-10 pela defesa da trabalhadora contra a sentença, o relator revelou que os extratos juntados aos autos pela trabalhadora foram emitidos alguns dias antes do pedido de demissão, a demonstrar que a motivação do ato teve suporte, de fato, na ausência de recolhimento do FGTS, descumprimento grave do contrato de trabalho que justifica a resolução do contrato na forma do artigo 483, “d”, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Além disso, o pedido de demissão apresentado segue um modelo padrão, no qual há requerimento de dispensa de aviso prévio, revelou o relator.
Em situações normais, o desembargador disse que consideraria que o término do contrato de trabalho decorreu de iniciativa do empregado, como expressão de sua livre manifestação de vontade.
No caso em análise, contudo, em razão das condições da trabalhadora, da grave falta cometida pelo empregador – após oito anos de contrato, o saldo de FGTS era de pouco mais de R$ 586,00 – “não se pode concluir de forma diversa, senão que a empregada pediu demissão por não poder mais continuar a prestar serviços para um empregador que violou uma das poucas garantias das quais dispõe o trabalhador, que é o FGTS”, explicou.
Ao constatar a gravidade da falta cometida pelo empregador, a trabalhadora poderia, simplesmente, não mais comparecer ao trabalho e, mais tarde, sabedora de seus direitos, ajuizar ação postulando a rescisão indireta, como em muitos casos isso acontece, disse o desembargador.
Mas, para ele, a trabalhadora preferiu comunicar que estava saindo da empresa, mediante o conhecido pedido de demissão.
“Penso, portanto, que esse gesto, e repito, considerando as peculiaridades deste caso, não pode obstar o reconhecimento da rescisão indireta do contrato de trabalho”, concluiu o relator que reconheceu a ocorrência de falta grave cometida pelo empregador como motivadora da rescisão contratual e deu provimento ao recurso para converter o pedido de demissão em rescisão indireta do contrato de trabalho.