Queira-se ou não, ensino de gramática é ainda o grande nó da escola. Perde-se tempo e na hora errada com seus temas. O fundamental é desenvolver as capacidades necessárias para leitura e escrita de textos de natureza diversa.
Muita gente pensa que os alunos não aprenderiam certas estruturas sem aulas explícitas. Não aprenderiam a dizer “minha mãe me ama” sem aulas sobre pronomes oblíquos. Ora, basta ouvir crianças ou pessoas que nunca foram à escola, ou gente que nunca estudou gramática (Platão? Camões?), até porque não existiam, para dar-se conta do tamanho da bobagem.
Novas regras ou estruturas se aprendem pela exposição e, nas aulas, podem ser objeto de comentário do professor, durante leituras e revisões dos textos escritos. Para considerar uma questão bem tradicional, se um aluno escreve que “assistiu o jogo”, pode ser ensinado a dizer “assisti ao jogo” (sem fanatismo).
Insisto sempre na prioridade desse tipo de “ensino de gramática”, levando em conta que “gramática” tem ao menos dois sentidos: o conjunto de regras da língua que o falante domina (a gramática internalizada, como ensinou Chomsky) e um compêndio que apresenta categorias (nome, verbo, preposição…) e descreve fatos da língua (e corrige, no caso das gramáticas escolares).
Se a escola decide ensinar este conjunto de categorias, deve escolher a hora de fazer isso (em todas as séries? No 2º grau?) e a teoria a seguir. Em geral, a escola não lê gramáticas de verdade. Vale-se de lições simplificadas dos manuais didáticos (ou apostilas, o que, em geral, é pior). Assim, o aluno não tem acesso a questões teóricas relevantes, sendo mais ou menos levado a repetir definições discutíveis e a fazer análises suspeitas.
Exemplifico com a questão das orações subordinadas. Suponhamos que, em uma aula, o tópico seja analisar estruturas como “Eu vi que ele saiu” (coisa fácil, nada comparável à letra do Hino Nacional). Será exposta a tese segundo a qual uma oração pode equivaler a um nome, do ponto de vista sintático:
Eu vi que ele saiu = Eu vi a saída dele.
Se “a saída dele” é objeto direto de “vi”, então, “que ele saiu” também é objeto direto de “vi”. A conclusão será que “Eu vi” é a oração principal e “que ele saiu” é a subordinada substantiva objetiva direta.
Certo? Errado! Errado, mas é assim que todo mundo ensina.
Quem corrige é Perini (por exemplo, em Princípios de linguística descritiva, Parábola, cap. 21). A análise que ele propõe é divergente dessa em dois aspectos cruciais:
Para ele, a oração principal é o período completo. Por exemplo:
“Eu vi que o cachorro saiu.”
Argumento? “Eu vi” não chega a ser uma oração, porque não tem sentido completo (basta ver que, para explicar a equivalência, dizemos “eu vi a saída dele”). Sendo “ver” um verbo transitivo, a oração só se completa com o objeto.
Há outra razão: diz-se que a subordinada exerce uma função na principal. Mas como “que ele saiu” exercerá função na principal, se está fora dela? É uma questão (ou duas) de coerência. A oração subordinada, por sua vez, não é “que ele saiu”. Por quê? Porque “que ele saiu” também não é oração. Ora, a subordinada tem de ser uma oração. Então, é “ele saiu”. Aqui Perini introduz (na verdade, retoma e aplica) um conceito que não é nomeado nas gramáticas tradicionais, o de constituinte, que vai lhe servir para identificar o objeto direto da oração subordinada: “que ele saiu” é este objeto, porque é esta sequência que está “no lugar” de “a saída dele” (pode-se discutir isso, certamente; uma alternativa seria deixar a conjunção “solta”, mas a solução de Perini é interessante).
Fazendo essa análise, conclui Perini, tudo o que uma gramática diz sobre o período composto pode ser levado a sério (e não abandonado na hora da análise): que tem mais de uma oração, que a principal tem sentido completo, que a subordinada exerce uma função na principal.
Vejamos como Bechara trata da subordinação (Moderna gramática portuguesa, 37ª edição revista e ampliada, p. 462 e ss.). Começa dizendo que “a noite chegou”, que, eventualmente pode até ser um texto, pode “passar a uma camada inferior” e “funcionar como membro sintático de outra unidade”:
“O caçador percebeu que a noite chegou” (atenção ao grifo!!).
Acrescenta:
“A primitiva oração independente ” ”a noite chegou”” transportou-se do nível sintático de independência para exercer a função de complemento ou objeto direto […] da oração a que pertence o núcleo verbal ””percebeu”””.
Observe-se o que segue:
“Dizemos, então, que a unidade sintática ””que a noite chegou”” é uma oração subordinada”.
Ora, ele vinha dizendo que “a noite chegou” é uma oração. Por que, de repente, sem explicação, a oração passa a ser “que a noite chegou”? Em seguida, volta ao bom caminho:
“A gramática tradicional chama à unidade ””O caçador percebeu”” oração principal. Gramaticalmente, a unidade oracional ””O caçador percebeu que a noite chegou”” é uma unidade sintática igual a ””O caçador percebeu a chegada da noite””, onde ””a chegada da noite”” integra indissoluvelmente a relação predicativa…”.
E logo adiante (analisando):
“Sujeito: ””o caçador””. Predicado: ””percebeu que a noite chegou”” [e não ””percebeu””; nota minha]. Como o objeto direto está constituído por uma oração subordinada, são passíveis de análise suas unidades constitutivas: Sujeito: ””a noite””. Predicado: ””chegou”””.
A única escorregada de Bechara está na passagem em que trata “que a noite chegou”, sem explicação, como oração subordinada. Observe-se que, no final, a oração subordinada volta a ser “a noite chegou”. Bechara sabe que as coisas são como são, mas, eventualmente, escorrega para a versão tradicional. Ensinar gramática na escola deveria ser atividade análoga às das ciências, isto é, de química, física, biologia. As exigências básicas são levar em conta os fatos e aplicar coerentemente as categorias definidas (célula é célula, oxigênio é oxigênio etc.).
Ensinar a ler e a escrever direito é outro departamento.