O barulho era estranho, quase um gemido. “Parecia um gato”, disse o casal que avistou o saco de lixo jogado na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte.
Ao resgatarem o embrulho, a surpresa: uma recém-nascida envolvida no plástico da sacola. Tinha sido jogada pela própria mãe. Essa cena ocorreu há 14 anos. A mulher foi localizada pela polícia e processada por tentativa de homicídio. Candidatos de todo o Brasil quiseram adotar a menina que escapou da morte.
A entrega legal para adoção era prevista em artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Uma mãe em desespero, uma filha em risco. De um acontecimento terrível, várias lições. Intensificou-se a divulgação da chance de qualquer gestante ou mãe que não deseja ficar com o filho entregá-lo, voluntariamente, para adoção.
Essa possibilidade, já estava prevista no art. 226, da Constituição Federal e nos artigos 13 e 19-A, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entretanto, foi consolidada em 2016, quando entrou em vigor a Lei 13.257, que instituiu o Marco Legal da Primeira Infância.
Portanto, a desembargadora Valéria Rodrigues Queiroz, superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), destacou: “A entrega legal concretiza o direito fundamental à vida, pois inibe o aborto, o tráfico de crianças e adoções ilegais, inegavelmente uma realidade social”.
De acordo com a magistrada, ao se sentir oprimida pelo preconceito, por questões psicológicas, morais, financeiras e pela pressão social, a mulher é levada a ter o bebê em casa ou em outro local inseguro. Assim, sem qualquer amparo, por acreditar que ali vai conseguir esconder da família e da sociedade o nascimento do filho. “Isso rotineiramente caminha para um desfecho trágico de abandono de bebês”, ressaltou a magistrada.
Entretanto, no programa Entrega Legal do Tribunal de Justiça, mães e gestantes comunicam sua intenção ao Conselho Tutelar. Posteriormente, o Conselho entra em contato com a Vara da Infância e da Juventude local.
Contudo, duas providências são tomadas de imediato. A primeira é viabilizar a escuta da mãe por uma equipe técnica, formada por psicólogos e assistentes sociais; para que ela entenda a abrangência de sua decisão e as consequências. Entretanto, essa fase é especialmente importante, uma vez que a opção escolhida é irreversível.
A segunda providência é permitir o acesso da mãe a um defensor público. É um espaço de diálogo técnico; no qual o profissional presta orientações sob o ponto de vista jurídico, para que ela se sinta segura do que está fazendo. Desta forma, haverá explicação sobre a adoção e também sobre a futura perda do poder familiar.
Posteriormente, o juiz da Vara da Infância e da Juventude também ouve a mãe em uma audiência previamente agendada. Assim, diante do magistrado, a mulher confirma os seus motivos e esclarece se tem consciência de todas as consequências envolvidas.
O juiz José Honório Rezende, da Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte, presidiu inúmeras audiências para definir o futuro de crianças recém-nascidas. Contudo, em muitas delas, a adoção foi concedida; já em outras, ele negou a entrega legal.
O magistrado lembra o caso de uma jovem de 19 anos, que havia escondido de seu pai a gravidez. Isto porque, ela tinha medo da reação dele, e pretendia entregar o filho para adoção.
Nestas circunstâncias, alguns especialistas entendem que a vontade da mãe deve prevalecer e ser atendida de forma absoluta; entretanto o juiz destaca que isso não é motivo suficiente para justificar a entrega.
Assim, em nova audiência marcada pelo magistrado, ele próprio comunicou a gestação aos pais da jovem. “A surpresa foi a comoção e o encantamento dos avós diante da nova integrante da família. Por isso, o juiz precisa examinar cada caso com muito cuidado, avaliando cada história e a motivação pessoal da mãe”, destacou.
No caso da criança jogada na Lagoa da Pampulha houve a adoção. A mãe biológica foi presa, condenada e já cumpriu toda a pena.
Portanto, esse é o objetivo do programa de entrega voluntária para adoção. Por isso, o ECA oferece essa iniciativa, fundamental para coibir o abandono de bebês em latas de lixos, matagais, rios, além de crimes como a venda de crianças, adoções ilegais, abortos clandestinos e o aumento de crianças em entidades de acolhimento.
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