Liberdade religiosa em concurso público é defendida pelas partes interessadas

No início da tarde da última quinta-feira (19/11), as partes envolvidas nos processos, as entidades interessadas admitidas pelos relatores e o procurador-geral da República, Augusto Aras, manifestaram-se sobre a possibilidade de mudança de data ou local de concurso público para candidatos que, em virtude de sua crença religiosa (adventista), devem resguardar o sábado. 

A matéria é objeto do Recurso Extraordinário (RE) 611874 e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1099099, com repercussão geral reconhecida, cujo julgamento teve início na sessão do dia 18/11.

Liberdade religiosa

O advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, afirmou que a liberdade religiosa está na origem de todas as demais liberdades e tem a tolerância em sua essência, como verdadeira aceitação e acolhida do outro, sem qualquer forma de discriminação. Apesar de a União ser a autora do RE 611874, contra decisão que permitiu a um adventista realizar prova em data e hora diversas das estabelecidas no calendário do concurso, Levi defendeu a flexibilização das datas e uma “leitura conciliatória” da matéria, com o objetivo de evitar a repetição de litígios semelhantes.

Preconceito indireto

A defesa da professora adventista que interpôs o ARE 1099099, reprovada no estágio probatório, representada pela advogada Patrícia Conceição Moraes declarou que, desde a admissão, sua cliente havia solicitado que a carga horária fosse distribuída de modo a não abranger aulas noturnas às sextas-feiras e se colocado à disposição para assumir horários alternativos, entretanto não foi atendida. Nesse sentido, a advogada ressaltou que, mesmo depois de 120 anos de o Brasil ter se tornado um Estado laico, “ainda vivenciamos um preconceito indireto”, porquanto não é dada a um cidadão a oportunidade de se tornar funcionário público e seguir os preceitos de sua religião, “sob pena de ser considerado não apto no estágio probatório, como aconteceu na hipótese no quesito de assiduidade”.

Prestação alternativa

Por sua vez, a advogada Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, representante do candidato adventista no RE 611874, destacou que o Estado tem a obrigação de acomodar o pluralismo religioso e oferecer prestação alternativa, e lembrou que o Brasil tem a maior comunidade adventista do mundo, com mais de 2,5 milhões de membros. No entanto, o candidato, aprovado em primeiro lugar, não foi nomeado porque não lhe foi dada a oportunidade de fazer o exame no domingo. 

Apesar disso, a advogada reconheceu que o Estado brasileiro amadureceu muito em relação à matéria, especialmente em razão do Enem, em que mais de 450 mil estudantes adventistas puderam fazer a prova em outro horário, sem gerar grande custo extra nem comprometer a higidez do certame.

Fato social e histórico

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), representada por Luigi Mateus Braga, defendeu que a Constituição Federal é muito clara ao dizer que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa e que o tema religioso em questão não se trata de doutrina, mas sim de um fato social. De acordo com Braga, o sábado é realmente um dia muito especial para os adventistas, mas “são milhares de anos de história em que o sábado é guardado, e isso não é uma escolha apenas de quem professa essa fé”.

Dignidade dos candidatos

Como representante da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE-MG), Adriana Patrícia Campos Pereira ressaltou que a realização de provas em horário alternativo, em razão de convicções religiosas, não resulta em concessão de privilégios em detrimento dos demais candidatos, porém garante igualdade entre todos eles. 

No entendimento da defensora pública, a situação não se refere ao simples desejo de realizar provas em dia e horário diverso dos demais candidatos. “Ela envolve questões e preceitos religiosos extremamente caros para quem os professa, constituindo uma questão diretamente ligada à dignidade de tais indivíduos”, afirmou. “Quem invoca direito de crença e consciência não coloca em risco as atividades do Estado; antes, garante a própria ordem constitucional sustentada pela própria isonomia”.

Relação de cooperação

Já pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPE-SP), Fernanda Maria de Lucena Bussinger afirmou que a Constituição Federal apresenta uma relação de cooperação entre o Estado e a religião. “A existência de multivisões é que permite a formação da própria democracia pluralista”, assinalou. De acordo com a defensora paulista, o texto constitucional prevê expressamente exemplos em que as organizações eclesiásticas colaboram com o Estado em diversas atribuições públicas, e a concessão do pedido não fere a laicidade do Estado, “que impõe a neutralidade, de forma que nenhuma decisão seja tomada com incidência direta das religiões, mas não exige indiferença em relação a todas elas”.

Não discriminação

A Confederação Israelita do Brasil (Conib) foi representada por Fernando Lottenberg, para quem a questão tratada nos recursos não diz respeito somente às minorias, mas sim à própria sociedade brasileira. “Permitir que um servidor público seja exonerado nas condições aqui tratadas abre as portas para um comportamento discriminatório”, ponderou. Do mesmo modo, Lottenberg defendeu que a crença de que determinado dia é sagrado, “é plenamente legítima dentro da concepção de liberdade” e observou que há proteção constitucional para que esse dia seja respeitado, como já ocorre no Enem. O representante da Conib exemplificou que a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 13.796/2019) impõe às instituições de ensino a obrigação de ofertarem medidas alternativas aos seus alunos.

Laicidade e isonomia

O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, ponderou sobre a laicidade do Estado e os princípio da isonomia e da impessoalidade, valores constitucionais a serem harmonizados no caso. Na avaliação do PGR, a laicidade impõe ao Estado o dever de neutralidade em relação às diferenças de crenças religiosas, “como uma garantia que salvaguarda indivíduos de ações estatais que possam prejudicar ou beneficiar adeptos de determinada crença religiosa”. Quanto ao princípio da isonomia, Atas afirmou que o Estado não pode criar distinções entre brasileiros em razão da liberdade religiosa.

Nesse sentido, Aras se manifestou pelo desprovimento do RE da União, apesar de reconhecer que o direito fundamental à liberdade de crença religiosa, por si só, não impõe ao Estado a obrigação de realizar etapas de concurso público em dias distintos por motivo de crença religiosa. 

O PGR entende que a comissão de concurso pode adotar essa prática quando não configurar violação à laicidade, à isonomia e à impessoalidade. Quanto ao ARE, o procurador opinou pelo provimento do recurso para que a servidora seja reintegrada ao cargo de professora e para que o gestor local examine a possibilidade de obrigação alternativa.

Fonte: STF

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