Batizada como Lei da Ficha Limpa, a Lei Complementar 135/2010, completa 10 anos neste mês de junho, sendo comemorada como um avanço em termos democráticos. A referida lei teve origem em um projeto de lei de iniciativa popular que, contou com o apoio de quase dois milhões de brasileiros, vindo a se tornar um importante instrumento à disposição dos eleitores no momento de escolha de seus representantes políticos. Com tamanha intensidade que “ficha limpa” e “ficha suja” se tornaram os adjetivos mais conhecidos para definir um bom e um mau político.
A Lei da Ficha Limpa inovou a redação da Lei de Inelegibilidade (Lei Complementar 64/1990), com a criação de outras hipóteses voltadas à proteção da probidade e da moralidade administrativas no exercício do mandato, nos termos do parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal. A lei, por exemplo, veda por oito anos a candidatura de quem tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão definitiva (transitada em julgado) ou de órgão colegiado, ainda que, nessa hipótese, haja possibilidade de recursos.
Em conformidade com o novo texto, são inelegíveis os candidatos condenados em razão da prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; por crimes contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; e por crimes contra o meio ambiente e a saúde pública.
De igual forma, se tornam inaptos a concorrer a eleições candidatos que tenham cometido crimes eleitorais com previsão de pena privativa de liberdade; crimes de abuso de autoridade, quando houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins; crimes de racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; crimes contra a vida e a dignidade sexual; e crimes praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.
A primeira grande celeuma jurídica estabelecida com a edição da Lei da Ficha Limpa foi em 04/06/2010, que tratou da aplicação da norma às eleições gerais daquele ano. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entendeu que a lei tinha aplicação imediata, e que seus dispositivos já deveriam orientar os juízes eleitorais de todo o país nos processos de registros de candidatura. Contudo, essa interpretação foi questionada por candidatos no Supremo Tribunal Federal (STF).
O caso do então candidato ao governo do Distrito Federal Joaquim Roriz, levado ao Plenário em setembro de 2010, foi o Recurso Extraordinário (RE 630147), com repercussão geral (Tema 367).. Sua defesa sustentava que a aplicação imediata da LC 135/2010 afrontava o artigo 16 da Constituição Federal, que trata do princípio do devido processo legal eleitoral.
O ministro Ayres Britto ( já aposentado), relator do caso na época, votou pela constitucionalidade da alínea “k” do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/1990, que considera inelegíveis os ocupantes de cargos eletivos “que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo” que poderia resultar na cassação, semelhante ao caso. Na época em que era senador pelo DF, Roriz renunciou ao mandato antes que fosse notificado pelo Conselho de Ética do Senado Federal em um processo por quebra de decoro parlamentar instaurado no âmbito da Operação Aquarela, que investigou um esquema de desvio de dinheiro no Banco de Brasília (BRB).
O ministro Ayres Britto, em seu voto, entendeu que a Constituição, ao tratar da inelegibilidade no contexto de proteção da probidade e da moralidade (artigo 14, parágrafo 9º), determinou que a lei complementar sobre a matéria considerasse a vida pregressa do candidato. Seu voto foi seguido pelos ministros Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie.
O ministro Dias Toffoli abriu divergência, por entender que a aplicação imediata da lei afrontava o princípio da anterioridade eleitoral, segundo o qual a lei que alterar o processo eleitoral não se aplica à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. A divergência foi seguida pelos ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, então presidente do STF.
Com a situação de empate, o julgamento acabou sendo suspenso. Na época,o STF contava então com apenas 10 ministros, em razão da recente aposentadoria do ministro Eros Grau. O recurso acabou extinto sem conclusão do julgamento de mérito depois que Roriz desistiu da candidatura e indicou sua esposa, Wesllian, para a disputa. Prevaleceu o entendimento de que o recurso havia perdido objeto e, por isso, a validade da ficha limpa para as eleições daquele ano deveria ser examinada em outro processo.
No julgamento do recurso de Jader Barbalho (RE 631102), então candidato a senador pelo Pará foi examinado em outubro de 2010 com o Tema 367 da repercussão geral, em que o Plenário manteve a decisão do TSE que o havia declarado inelegível com base na Lei da Ficha Limpa. Nesse julgamento também houve empate, todavia os ministros decidiram aplicar a regra do Regimento Interno do STF que mantém a validade do ato contestado em caso de empate.
A situação do caso de Barbalho também envolvia renúncia: em 2001, ele havia renunciado ao cargo de senador após ser alvo de denúncias sobre suposto desvio de dinheiro do Banco do Estado do Pará (Banpará) quando era governador do estado. Entretanto, os votos recebidos por ele na eleição de 2010 não foram computados como válidos, uma vez que ele havia concorrido com o registro de candidatura indeferido.
Em março de 2011, por maioria de votos, o STF decidiu que a Lei da Ficha Limpa não deveria ter sido aplicada às eleições realizadas em 2010, em respeito ao princípio constitucional da anterioridade da lei eleitoral. A decisão se deu no julgamento do RE 633703, também com repercussão geral (Tema 387), em que se discutiu a aplicabilidade da nova lei àquele pleito. Os ministros deram provimento, por 6 votos a 5, ao recurso de um candidato a deputado estadual em Minas Gerais que teve seu registro negado com base na Lei de Inelegibilidade em sua nova redação.
Mediante essa situação, a defesa de Jader Barbalho opôs embargos de declaração no RE 631102 requerendo a retratação do Supremo, com a aplicação do novo entendimento. Em virtude dessa situação, sua candidatura foi liberada, e se tornou o segundo candidato a senador mais votado no seu estado, sendo empossado.
O STF, por maioria de votos, em fevereiro de 2012, considerou constitucional a Lei da Ficha Limpa e permitiu sua aplicação nas Eleições de 2012, alcançando atos e fatos ocorridos antes de sua vigência. A decisão foi tomada no exame conjunto das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 29 e 30 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4578.
O Plenário do STF decidiu, em outubro de 2017 por maioria de votos, que é válida a aplicação do prazo de oito anos de inelegibilidade a condenados pela Justiça Eleitoral por abuso do poder econômico ou político antes da edição da Lei da Ficha Limpa.
A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 785068, com repercussão geral reconhecida (Tema 860), interposto por um vereador de Nova Soure (BA) contra decisão do TSE que manteve o indeferimento de seu registro para concorrer às eleições de 2012, sob o fundamento de que o novo prazo de oito anos alcançava situações em que o período de inelegibilidade previsto na redação anterior da lei (três anos), estabelecido por decisão com trânsito em julgado, tenha sido integralmente cumprido.
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