“Bode expiatório” e “atirar a primeira pedra” são expressões cotidianas que tiveram origem na Bíblia
Quais são os grandes referenciais de comunicação comuns a todos os brasileiros? Ao contrário de outros países e épocas, não temos clássicos que todos tenham lido; nem riquíssimos repertórios de provérbios, que, no Oriente, são conhecidos por qualquer criança. Não é patrimônio de todos os episódios da história pátria, que possam ser trazidos para aplicação a outros casos. Nem um Alcorão, que nos países árabes abastece de metáforas e frases feitas os diversos setores da vida secular.
Para nós, o futebol é de longe o principal fornecedor de metáforas e expressões para a vida cotidiana: situações políticas, econômicas, afetivas, profissionais etc. são rapidamente compreendidas por meio do recurso a seu amplíssimo repertório. Um par de exemplos, de comunicação aparentemente difícil, mas que se tira de letra, bem e rapidamente, evocando o futebol.
Dois amigos em um restaurante vão pedir pratos individuais e querem de algum modo, compartilhá-los. Um deles diz:
– Vamos pedir dois pratos e a gente divide.
Ao que o outro, responde:
– Divide, não: o mando de jogo da carne é meu; o do peixe, é seu. (Não vai ser meio a meio, mas…)
Final de semestre; a prova final já foi feita, o professor pretende dar aulas muito abreviadas e simbólicas, mas não pode dispensar formalmente os alunos (embora queira passar a mensagem de que vai fazer vista grossa na presença e “esquecer” de fazer a chamada…), mas, claro, não quer formalizar esse relaxamento. E diz:
– Bom, gente, nosso curso praticamente acabou. Ainda temos mais duas aulas, mas é só para cumprir tabela…
Mesmo os que não se interessam por futebol acabam valendo-se de sua linguagem, tal a viveza e o interesse de sua vigência para o brasileiro.
Se metáfora fosse campeonato de pontos corridos, o futebol seria campeão com muitas rodadas de antecipação. Mas, e para saber quem é o vice? Bom, aí embolou o meio de campo…
Talvez a Bíblia. Com a desvantagem de que suas metáforas e expressões são usadas, mas sem que se tenha o mesmo vigor e, em alguns casos, os usuários nem se lembram da proveniência bíblica desta ou daquela expressão. Quando Eike Batista diz “Atire a primeira pedra o motorista que nunca tomou uma multa por excesso de velocidade”, seus ouvintes entendem, mas poucos talvez evoquem o episódio de Jo 8, 7, no qual Jesus impede o apedrejamento da mulher adúltera. Para não falar do “bode expiatório” de Lv 16, 8-10; 20-22; que alguns chegam a pensar que é um bode que fica espiando e acaba por levar a culpa.
Recolhemos a seguir algumas expressões e frases feitas, cuja origem bíblica não é evidente para todos (em alguns casos, não se tratará necessariamente de origem, mas de alguma relação de sentido com este ou aquele versículo).
Modos de falar também sofrem influências (ao menos semelhanças) dos raciocínios bíblicos.
Uma forma de superlativo semita é a conhecida “x dos x”. Aparece, por exemplo, em Apocalipse 17, 14 (ou 19,16), quando se diz de Cristo, que é Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Curiosamente, esse formato bíblico reaparece (surpresa das surpresas) no hino do Corinthians: “Salve o Corinthians, o campeão dos campeões”.
Note-se, apenas de passagem, que o próprio nome do time brasileiro é bíblico, remete à Epistola aos Coríntios (em inglês, Corinthians). Mais precisamente à passagem em que São Paulo compara os esforços requeridos pela vida cristã aos de atletas e corredores que desejam vitórias (I Cor. 9: 24 e ss.).
No século 19, ante o preconceito de igrejas contra o esporte (“culto ao corpo”, etc.), o aval do Apóstolo era usado por cristãos esportistas que invocavam a Epístola (daí o nome do time inglês Corinthian, que inspirou o nosso Corinthians).
A gramática semita pode valer-se do passado para expressar o futuro, que aparece, assim, como mera resultante do passado. Como ensina Aida Hanania, falando da peculiar visão semita do tempo, ancorada no passado:
“É como se, nessa visão monolítica do tempo, o presente e o futuro não tivessem autonomia em face do passado, este, sim, determinante e determinador. Essa preponderância do passado repercute na gramática”.
Diz o Eclesiastes (1,9): “O que foi é o que será; o que se fez é o que se tornará a fazer: nada há de novo sob o sol!”.
O futuro é, assim, até em termos gramaticais, determinado pelo passado e por ele expresso em sentenças proverbiais, como em “Quem semeia ventos, colhe tempestades”, que no original soa: “semeou ventos, colheu tempestades”.
Tal fato torna-se compreensível quando nos lembramos de alguns exemplos de uso semelhante em nossa língua, especialmente em linguagem publicitária. Como na campanha de 2012 da Skol retornável: “Trocou, economizou” (quem trocar, economizará); ou na antiga do Estadão: “anunciou, vendeu” (quem anunciar, venderá). Ou a da Sedex “mandou, chegou” (se mandar, chegará). E se escrever e não ler, o pau comerá (“Escreveu, não leu, o pau comeu”). E quem bater, levará (“Bateu, levou”).